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Descrição de chapéu Minha História

Fui bolsista em um colégio de elite de SP e vi a segregação de perto

Ser jovem humilde entre ricos pode ser mortal, mas estar entre semelhantes não exclui risco de bullying

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São Paulo

Aos 14 anos, meu maior desejo era estudar em um colégio excelente, realidade distante para minha família. Assim como Pedro Henrique dos Santos, bolsista do Bandeirantes que se suicidou, eu amava estudar.

E, também como ele, deixei uma escola precária para ser bolsista num dos colégios mais caros de São Paulo.

Antiga sede do Colégio São Luís, na região da av. Paulista - Zanone Fraissat/Folhapress

'Todos somos iguais diante de Deus' (Jó 33:6-18)

Era 2007, e o Colégio São Luís ficava numa travessa da avenida Paulista, nos Jardins, num prédio espelhado com elevadores, quadras, piscina e uma grande biblioteca.

Havia um porém: enquanto no Bandeirantes bolsistas e pagantes são das mesmas turmas, os bolsistas do São Luís estudam à noite, separados dos filhos abastados da elite paulistana. É modelo diferente também do adotado pelo Porto Seguro, que atende alunos com bolsas num prédio à parte, em esquema que vem sendo questionado.

A contrapartida da oferta de bolsas por entidades beneficentes, como o São Luís, ocorre na forma de isenção fiscal regulada pela Lei 187/2021, que determina ser vedada "qualquer discriminação ou diferença de tratamento entre alunos bolsistas e pagantes".

No São Luís, pesa ainda o imperativo moral que permeia toda a doutrina jesuítica que o colégio diz defender.

Quando me matriculei, a justificativa para separar bolsistas em outro turno era a de que o noturno permite que a instituição atenda alunos que trabalham. E, dizia-se, os dois turnos não caberiam no prédio de 110 metros de altura que ocupava quase uma quadra na Haddock Lobo.

A seleção para bolsas ocorria via prova e entrevista. Bolsas integrais não eram opção em 2007. A coordenação nos dizia que pagar, ainda que pouco, nos faria valorizar mais estar ali.

Durante os anos no São Luís, minha alegria cedeu lugar à realidade. As aulas começavam cerca de 18h30. A entrada dos bolsistas era proibida antes das 17h30, inclusive para uso da biblioteca. Quem tentasse era barrado na portaria. Não é necessário explicar a violência simbólica desse gesto, e o que ele diz para jovens de 15 anos que ainda estão tentando entender seu lugar no mundo. Me lembro de estudar para provas com colegas na cheia e barulhenta praça de alimentação do shopping Center 3, próximo ao colégio.

A direção exigia que os alunos "do Noturno", como éramos chamados, usassem uniforme —mas não o tradicional branco e azul, em algodão, com o brasão do São Luís. Foi criada uma versão em azul e poliamida, com a palavra "Noturno" grafada. Dizia-se que a identificação era para nossa segurança.

Ninguém questionava diretamente essas normas de segregação que, hoje entendo, podem ser consideradas ilegais.

'E o rico e o pobre se encontraram; a todos os fez o Senhor' (Provérbios 22:2)

Eu era ótima aluna e por isso podia participar de viagens e eventos do colégio, quando havia uma ou duas vagas para os bolsistas. Mas era uma seleção quase higienista: só os mais bonzinhos e estudiosos podiam desfrutar do privilégio de conviver com os filhos da elite –sob supervisão e sempre em eventos limitados.

Lembro-me de só um evento em que noturno e diurno puderam participar igualmente. O colégio recebeu 20 britânicos, divididos para estadia curta nas casas de alunos selecionados. Surpresa, disse para Hillary, a jovem que foi parar na casa de um quarto da minha família, que isso era incomum. "Foi exigência do nosso programa. Queríamos viver a experiência brasileira real", disse ela.

Em 2009, o colégio separou os turnos em CNPJs distintos para melhorar a posição nos rankings do Enem. O noturno passou a ser "Colégio São Luís - Unidade 2" –ainda que, na prática, a escola nunca possuiu duas unidades. De fato, a nota da noite na prova era menor. Além de carga horária reduzida, tínhamos background deficiente e heterogêneo e alguns chegavam às aulas cansados do trabalho. Os professores, embora excelentes, faziam o que podiam.

Para se redimir perante os pais do diurno pela posição num desses rankings, o colégio decidiu expor no prédio texto que dizia que a posição aquém da esperada era explicada pela benevolência em acolher bolsistas —mas que a mudança nos CNPJs corrigiria as distorções. Doeu, é claro. A humilhação com chancela institucional não passou despercebida pelos bolsistas. Conheci no noturno algumas das pessoas mais inteligentes que já vi. Para o colégio, no entanto, éramos dano colateral.

No mesmo ano, parte dos bolsistas se organizou para criar um grêmio do Noturno e pedir, por exemplo, que pudéssemos entrar mais cedo no colégio para estudar na biblioteca. Obtivemos conquistas pontuais, mas funcionários nos repreendiam desesperados: "Se continuarem protestando, vão encerrar o Noturno!".

A preocupação era genuína, assim como a ameaça constante que pairava no ar. Quem éramos nós para reclamar? É fácil manter pessoas silenciadas em condições de injustiça quando as alternativas que têm à frente são ainda piores.

Se segregar ricos e pobres é imoral e uni-los pode gerar tensão por vezes irreparável, qual a solução? Respondo com outra pergunta: nos dois cenários, o que há em comum?

Intolerância contra diferenças

Há dias fala-se sobre o bullying sofrido por Pedro, um jovem pobre, negro e gay, e atribui-se peso incontestável ao fato de ser um bolsista entre alguns dos jovens mais privilegiados do país. Faz sentido. Mas a dinâmica do bullying, creio, é mais complexa.

No São Luís, tive uma colega que sofreu o mais pesado dos bullyings. Era pobre e evangélica, se vestia como tal e era ridicularizada por outros alunos do Noturno.

Ali, entre bolsistas, também existia um microcosmo de diferenças, de pobres e periféricos a jovens que por pouco não conseguiam pagar o diurno. Católicos, evangélicos, negros, brancos. E ali também se instaurou uma tensão. Minha colega respondia a cada provocação com duas. Nenhum adulto que buscava mediar a situação conseguia. Sob o verniz da educação cristã, reinava um clima de intolerância e ódio. Mesmo entre bolsistas.

Minha colega se matou três anos após nossa formatura. Acompanhei de longe a investigação sobre crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, posteriormente arquivada.

O São Luís mudou para um espaço de 27 mil m² próximo ao Ibirapuera e adotou currículo internacional, exclusivo para o diurno, por cerca de R$ 9.000 ao mês em 2024. Para se adequar à nova lei de filantropia, passou a oferecer bolsas integrais para o noturno, além de alimentação, material e uniforme.

Hoje, bolsistas podem entrar no colégio de 15 a 45 minutos antes da aula, entre 16h30 e 17h15, a depender do dia. O grêmio do Noturno foi encerrado.

Uma consulta às fotos de aprovados no último vestibular mostra que a segregação por turno persiste. E o tradicional uniforme branco segue proibido aos bolsistas.

A morte de minha colega me traz hoje talvez o mesmo pesar que colegas de Pedro e outros carregarão também, marcados pelos anos em instituições em que o valor de um adolescente é medido pelo dinheiro ou uma aprovação na faculdade. Mas, afinal, o que se esperaria levar de lugares em que somos continuamente ensinados que alguns são melhores do que outros?

OUTRO LADO

Questionado a respeito dos pontos abordados neste texto, o Colégio São Luís respondeu que em 2024 há na instituição 351 jovens com bolsas de estudo integral.

"No cotidiano escolar, eles frequentam o mesmo campus do Curso Integral, utilizam as mesmas instalações e têm acesso a um currículo que oferece oportunidades para que o conhecimento seja construído de diversas formas, individual e coletivamente", acrescentou.

Sobre a divisão do noturno em Unidade 2, o colégio afirmou que "a separação das unidades, em 2009, teve o objetivo de atender a necessidade institucional e acadêmica de obter cenários mais precisos para avaliar os métodos adotados e os resultados obtidos em cada segmento do colégio".

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