O infográfico de gaveta e a arrogância do Ministério da Ciência
O episódio solapa um pouco mais a credibilidade do governo e acaba jogando sombra nas pesquisas científicas do país
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"Muitos gráficos —tabelas, mapas, diagramas— que vemos na TV, nos jornais, nas redes sociais, nos livros e nos anúncios publicitários nos enganam", sentencia o jornalista e designer Alberto Cairo logo na introdução de seu best seller, "How Charts Lie". Nesta semana, no entanto, quem recorreu a gráficos para tentar manipular o povo brasileiro foi o governo federal.
Em cerimônia realizada pelo Ministério da Ciência na última segunda-feira (19), a pasta exibiu um gráfico azulado, extraído de um famoso banco de imagens, para defender o impacto positivo de um possível novo remédio para a prevenção da COVID-19.
Não fosse pela sagacidade de Sam Pancher e Leonardo Lopes e pela velocidade de @and_wolf, todos personalidades conhecidas no universo do Twitter, o Brasil teria engolido o infográfico animado, que mostrava uma curva descendente, como prova definitiva do sucesso da nitazoxanida. O vermífugo é a nova substância encampada pelo governo federal como forma de fazer frente à atual pandemia.
O trabalho colaborativo dos três tuiteiros ficou pronto minutos depois da exposição feita, com toda pompa, pelo Ministério da Ciência e mostrou aos brasileiros que, nos dias de hoje, não é possível confiar mais em dados passados oficialmente pelas instâncias governamentais. "Se um simples gráfico foi usado fora de contexto, que outros dados também serão manipulados?", perguntavam-se os checadores de fato na tarde de segunda-feira.
Procurado para comentar o mau uso da infografia e a evidente tentativa de ludibriar o povo, o Ministério da Ciência preferiu uma postura arrogante. Em nota, disse que o gráfico animado tinha caráter apenas ilustrativo, esquivando-se, assim, do devido pedido de desculpas que o cidadão brasileiro merecia.
Pelas redes sociais, o ministro-astronauta Marcos Pontes não fez melhor. Publicou uma série de tuítes afirmando que a eficácia da nitazoxanida era "uma notícia de relevância" e que "obviamente a informação é baseada nos números, cálculos estatísticos etc, já de posse dos pesquisadores".
Aqui vão três ponderações: se há números confiáveis e dados definitivos dentro do ministério, por que não foram utilizados para expressar a verdade na apresentação feita pela pasta? Se Marcos Pontes realmente entende a relevância dessa notícia, por que não a divulgou por completo, permitindo que a sociedade também pudesse analisá-la? E, por fim, será que essa postura de omitir dados científicos não contradiz com o fato de o próprio presidente Jair Bolsonaro estar pedindo mais testes científicos sobre a possível vacina para Covid-19? Bolsonaro ressaltou que "o povo brasileiro não será cobaia de ninguém". Será que o Ministério da Ciência ouviu isso?
Do ponto de vista de quem luta contra a desinformação, o episódio do gráfico de gaveta é uma lambança feita de forma pensada e com caráter oficial. Mas o pior é que, além de solapar mais um pouco da credibilidade do governo (e do ministro Pontes), acaba jogando sombra nas pesquisas científicas do país. E o Brasil não precisa disso.
Em seu livro, Alberto Cairo explica que "políticos, marqueteiros e publicitários nos bombardeiam com números e gráficos certos de que não mergulharemos neles". Expressa com clareza como espertinhos de plantão contam com a ingenuidade e a impunidade para manipular interpretações.
Sorte do Brasil que, na segunda-feira, um trio atento se dispôs a verificar o material exibido. Sem Pancher, Lopes e Wolf, haveria em circulação outra notícia produzida pelo governo federal.
Cristina Tardáguila é diretora-adjunta da IFCN e fundadora da Agência Lupa
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