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Ainda há médicos receitando remédios ineficazes contra a Covid no SUS, diz Carlos Lula

Para presidente do Conass, isso ocorre porque Conselho Federal de Medicina não mudou entendimento sobre autonomia médica

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Brasília

O presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula, disse que ainda há médicos que receitam o "kit Covid" no SUS.

Trata-se de remédios como hidroxicloroquina e ivermectina, com ineficácia comprovada contra a doença.

"Ainda há [medicamentos sendo prescritos]. Eu me assusto, tem médico que prescreve e tem médico ainda dizendo para o pai não vacinar o filho. É um tipo de conduta absurda, mas existe. Lógico que com intensidade bem menor, mas ainda continuam prescrevendo", disse Lula em entrevista à Folha.

Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. - Divulgação

O secretário de Saúde disse que isso ainda tem ocorrido porque o CFM (Conselho Federal de Medicina) não mudou o entendimento sobre a autonomia do médico em relação a esses fármacos.

O parecer nº 4/2020 do CFM diz que o médico tem autonomia médica para que, em comum acordo com o paciente, estabeleça qual tratamento será realizado. Esse entendimento abre brecha para que remédios ineficazes continuem a ser receitados.

"A autonomia médica não é isso, não quer dizer que eu posso prescrever o que eu bem entender, não é isso a autonomia médica. Ela tem limites. Se eu tenho evidência científica que determinado medicamento não é eficaz para alterar a condição clínica do paciente, o médico não pode receitar o medicamento", afirmou.

Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de 2020, Marcelo Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) para encerrar a discussão sobre o uso do chamado kit Covid.

No entanto, o tema tem ganhado holofotes nos últimos dias após o secretário de Ciência e Tecnologia da pasta, Hélio Angotti, rejeitar diretriz que contraindica os medicamentos.

Lula destacou ainda que a pandemia foi o momento mais desafiador enfrentado pelo Conass nos últimos 40 anos e que, nesse período, a relação com o Ministério da Saúde foi colocada em xeque. Para ele, não é mais possível dialogar com Queiroga, que, a seu ver, tem atrapalhado a condução da pandemia.

O percentual de vacinados em algumas regiões brasileiras é baixo, como no Norte e no Nordeste. Por que isso ocorre principalmente nessas regiões? É muito difícil dar uma explicação geral do percentual de baixa vacinação. Mas a vacinação é mais baixa geralmente nas cidades mais pobres.

Onde tem a vacinação mais baixa? Área indígena, quilombola, população rural. Nessas regiões muitas vezes há dificuldade [de a vacina] chegar até as pessoas.

Em Mirador [no Maranhão], por exemplo, tem uma reserva enorme que fica a cem quilômetros de distância da sede. Essa pessoa vai para a sede só para se vacinar? É difícil. Se o município não criar estratégias para levar vacinas para essas pessoas, é difícil que elas se vacinem.

E tem de lidar com outro problema, tem uma diferença muito grande de quem está vacinado e o que está no site do ministério. No Sul e no Sudeste mais de 70% de Unidades Básicas de Saúde têm prontuário eletrônico e lançam diretamente no sistema, mas, no Norte e no Nordeste, não acontece isso, eles fazem tudo no papel.

O Conass completou 40 anos na semana passada. A pandemia foi um dos momentos mais desafiadores nesse período? Eu acredito que foi o período mais desafiador do conselho, um período em que nossa relação com o ministério [da Saúde] foi colocada em xeque o tempo todo, que estremeceu muito.

Por a gente ser um órgão integrante do SUS, muitas políticas públicas são decididas em conjunto com o representante dos estados, representante dos municípios e o ministério. Mas a possibilidade de dialogar, a possibilidade de construir foi colocada em xeque durante o período.

Eu não tenho mais relação com o ministro [Marcelo Queiroga], não falo com ele. Abaixo dele a gente consegue ter [relação], mas com ele a gente não consegue ter.

Por mais que o Conass antagonize muitas vezes com o ministério, porque esse também é o papel dele, eu não posso simplesmente frear o diálogo. Há algo muito maior que o papel de um ou de outro aqui estabelecido, tem uma política muito maior do que o ministro A ou o secretário B.

É importante dizer que o Conass é formado por secretários que representam os governadores, a maior parte dos governadores apoiam o presidente. Pelo menos apoiava.

A gente ter um conselho fechado em oposição à política desenvolvida pelo presidente da República [Jair Bolsonaro] não é algo simples, é algo que é de fato complexo e mais do que isso, surpreendente.

O senhor já disse antes que não há como dialogar com o ministro. Por quê? Ele não é muito afeito ao diálogo, é rude nesse traquejo.

A gente lida com pessoas que se opõem à gente o tempo todo, isso é natural do cargo que a gente ocupa. A gente tem de saber lidar com alguém que contradiz, com alguém que fala algo que a gente não vai gostar de ouvir.

Ele não tem maturidade democrática institucional para estar na posição que ocupa. Ele tem uma baixa capacidade de construir relação com quem diverge dele.

A gente tem essa dificuldade institucional, o que não tem com quem está abaixo dele. Vou citar o Rodrigo [Cruz, secretário-executivo do Ministério da Saúde], a gente conversa com ele e não conversa com o ministro.

A AMB (Associação Médica Brasileira) soltou uma nota criticando a postura do ministro em diversos pontos. O ministro de certa forma tem atrapalhado a condução da pandemia? Atrapalhou o tempo inteiro. A postura dele é assim: atrapalhou a vacinação de adolescentes, atrapalhou a vacinação de crianças, tentando agradar aos negacionistas, ao bolsonarismo.

Depois, fala que conseguiu as vacinas. Só faz isso por pressão, se deixasse não permitiria a vacinação.

A postura é de lamentar. Pode pegar vários órgãos que fazem política de saúde: a imensa maioria se opõe a essa postura de Queiroga nos últimos meses.

Quase dois anos desde o início da pandemia e o CFM ainda dá brecha para receitar o kit Covid ao justificar a autonomia médica. Seria o momento de rever isso? Dá tristeza a postura do CFM nisso tudo. O órgão deixou de ter a medicina baseada em evidência para ter a medicina baseada em Bolsonaro.

A autonomia médica não é isso, não quer dizer que eu posso prescrever o que eu bem entender, não é isso a autonomia médica. Ela tem limites.

Se eu tenho evidência científica que determinado medicamento não é eficaz para alterar a condição clínica do paciente, o médico não pode receitar o medicamento. Do jeito que o CFM fala é como se eu pudesse prescrever pedra para quem está com febre.

Se eu tenho os medicamentos X, Y, e Z que comprovadamente não produzem eficácia contra a doença e ainda continuo prescrevendo, a pessoa deveria responder por isso. Deveria responder no conselho, civilmente e criminalmente, se algo acontecesse com o doente.

Não é que a gente seja contra a autonomia médica, ela existe. A autonomia médica não é o que o CFM defende, e ele sabe disso. Só está sendo conveniente defender esse tipo de postura.

No SUS esses medicamentos que não têm eficácia ainda estão sendo prescritos? Ainda há [medicamentos sendo prescritos]. Eu me assusto, tem médico que prescreve e tem médico ainda dizendo para o pai não vacinar o filho.

É um tipo de conduta absurda, mas existe. Lógico que com intensidade bem menor, mas ainda continuam prescrevendo.

Algo que tem gerado bastante polêmica é a nota técnica publicada pelo secretário Hélio Angotti que rejeita a diretriz contra o "kit Covid". Qual a visão do senhor sobre isso? Ciência não é opinião, é método. Ainda mais ciência da saúde.

Eu tenho a repetição desse método para chegar a determinado resultado, que nem sempre agrada à política. O discurso deles [governo] não pode fugir do que iniciaram lá trás porque senão a narrativa perde sentido.

O Ministério da Saúde disse que vai manter o pagamento de diárias para funcionamento de 14 mil leitos de UTI específicos para Covid até o fim de fevereiro. Será suficiente? O ministro tem dito é que não vai faltar recurso. Tendo a necessidade de ampliar, ele diz que vai ser ampliado.

Quais as pautas que o Conass irá trabalhar neste ano? A pauta que a gente deve trabalhar neste ano é como recompor o sistema de saúde após esses dois anos de pandemia.

A gente tem uma fila enorme de exames em atraso, consultas em atraso, pacientes que se agravaram. É como se a gente tivesse saindo de uma guerra e tem aí um país a reconstruir. Vai ter de ser a reconstrução disso.


RAIO-X

Carlos Lula, 39
É advogado, consultor legislativo de carreira e professor universitário. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Constitucional, possui MBA em gestão empresarial e é secretário de Saúde do Estado do Maranhão desde 2016. Em 2018, foi eleito vice-presidente do Conass da Região Nordeste, tendo sido reeleito em 2019. Durante a pandemia da Covid-19, foi eleito presidente do Conselho em 2020 e reeleito em 2021

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