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Jogadoras contestam proibição ao hijab no futebol da França

Coletivo de atletas muçulmanas luta contra regra que considera discriminatória

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Constant Méheut
Sarcelles | The New York Times

​Aconteceu de novo em uma tarde recente de sábado em Sarcelles, um subúrbio na parte norte de Paris. O time amador em que ela joga tinha chegado para enfrentar o clube local e Diakité, 23, meio-campista muçulmana, estava com medo de que não seria autorizada a jogar usando o hijab.

O juiz a deixou entrar em campo, naquele dia. "Funcionou", ela disse, no final da partida, enquanto se encostava na cerca que limita o campo, com o rosto sorridente emoldurado por um lenço de cabeça preto da Nike.

Mas Diakité tinha simplesmente escapado por sorte.

Há anos, a Federação Francesa de Futebol proíbe que jogadores que participam de partidas oficiais usem "símbolos religiosos conspícuos", como hijabs, uma regra que a organização afirma derivar de seus valores estritamente laicos. Ainda que a proibição seja aplicada de maneira frouxa nas categorias amadoras, pende sobre as jogadoras muçulmanas há anos, destruindo sua esperança de carreiras profissionais no esporte e levando algumas delas a abandonar completamente o futebol.

Mama Diakité controla a bola em duelo de times amadoras; com a proibição ao hijab, ela desistiu de uma carreira no futebol - Monique Jaques/The New York Times

Em uma França cada vez mais multicultural e na qual o futebol feminino está florescendo, a proibição também vem provocando uma reação cada vez mais forte. E em posição de vanguarda quanto a isso está Les Hijabeuses, um grupo de jovens jogadoras de futebol, de diferentes times, que usam o hijab e uniram forças para uma campanha contra o que descrevem como uma regra discriminatória, que exclui as mulheres muçulmanas do esporte.

O ativismo delas repercutiu na França, causando a retomada de debates acalorados sobre a integração dos muçulmanos em um país cuja relação com o islamismo é complicada, e expondo as dificuldades das autoridades esportivas francesas para conciliar sua defesa de valores estritamente laicos e os apelos crescentes por uma maior representação em campo.

"O que queremos é ser aceitas como somos, colocar em prática esses grandes slogans de diversidade e inclusão", disse Founé Diawara, presidente do Les Hijabeuses, que tem 80 membros. "Nosso único desejo é jogar futebol."

O coletivo foi criado em 2020 com a ajuda de pesquisadores e organizadores comunitários, em uma tentativa de resolver um paradoxo: ainda que as leis francesas e a Fifa, a organização que comanda o futebol mundial, permitam que esportistas joguem usando hijabs, a federação francesa o proíbe, argumentando que isso violaria o princípio da neutralidade religiosa em campo.

Os defensores da proibição dizem que os hijabs são um portento do avanço da radicalização islâmica no esporte. Mas as histórias pessoais das integrantes das Hijabeuses enfatizam a maneira pela qual o futebol foi sinônimo de emancipação, para elas, e como a proibição continua a parecer um passo para trás.

Diakité começou a jogar futebol aos 12 anos, inicialmente escondida de seus pais, que viam o esporte como coisa de menino. "Eu queria ser futebolista profissional", disse ela, definindo esse objetivo como seu "sonho".

Jean-Claude Njehoya, o atual treinador de Diakité, disse que "quando ela era mais jovem, tinha muita técnica", o que poderia tê-la conduzido ao mais alto nível do esporte. Mas, "desde o momento em que compreendeu" que a proibição ao hijab a impactaria, ele disse, "ela deixou de batalhar para evoluir".

Diakité disse que decidiu por conta própria que usaria o hijab, em 2018 –e que abandonaria seu sonho no futebol. Ela agora joga por um clube de terceira divisão e planeja abrir uma autoescola. "Não tenho arrependimentos", disse. "Ou sou aceita como sou ou não. É isso e pronto."

Founé Diawara preside um grupo de atletas que luta pelo direito de jogar futebol na França usando o hijab - Monique Jaques/The New York Times

Karthoum Dembele, 19, meio-campista que usa um piercing no nariz, também disse que teve de confrontar sua mãe para ser autorizada a jogar. Ela rapidamente aderiu a um programa de esportes intensivo no ensino médio e participou de testes em clubes. Mas foi só quando descobriu sobre a proibição, quatro anos atrás, que ela percebeu que existia a possibilidade de que não fosse autorizada a competir.

"Eu consegui fazer com que minha mãe cedesse, e aí me dizem que a federação não vai me deixar jogar", disse Dembele. "E eu disse a mim mesma: que absurdo!"

Outras integrantes do grupo recordam episódios de árbitros que as impediram de entrar em campo, o que levou algumas delas a abandonar o futebol, por terem se sentido humilhadas, e a optar por esportes nos quais o hijab é permitido ou tolerado, como o handebol ou o futsal.

Ao longo do ano passado, Les Hijabeuses fez lobby junto à Federação Francesa de Futebol para derrubar a proibição. Elas enviaram cartas, reuniram-se com dirigentes e chegaram a organizar um protesto diante da sede da organização –sem resultado. Procurada pela reportagem, a federação se recusou a tecer comentários.

Paradoxalmente, foi o maior oponente do Les Hijabeuses que por fim as levou a conquistar atenção.

Em janeiro, um grupo de senadores conservadores tentou transformar em lei a proibição da federação ao hijab, argumentando que a peça ameaçava promover a expansão do radicalismo islâmico nos clubes esportivos. A campanha refletia o persistente incômodo que existe na França com relação aos véus islâmicos, que causam controvérsia regularmente. Em 2019, uma loja francesa abandonou seus planos de colocar a venda um hijab projetado para corredoras, depois de sofrer uma enxurrada de críticas.

Energizadas pelos esforços dos senadores, as integrantes do Les Hijabeuses organizaram uma campanha intensiva de lobby contra a emenda. Aproveitando ao máximo sua presença forte na mídia social –o grupo tem cerca de 30 mil seguidores no Instagram–, elas lançaram uma petição que recolheu mais de 70 mil assinaturas; conseguiram o apoio de dezenas de celebridades do esporte para sua causa; e organizaram jogos diante da sede do Senado, com a participação de atletas profissionais.

Ativistas lutam para que o hijab seja permitido pela federação francesa - Monique Jaques/The New York Times

​Vikash Dhorasoo, que jogou futebol profissional na França como meio-campista, disse que a proibição o espanta. "Não consigo entender", ele disse. "São os muçulmanos que são o alvo, nesse caso."

Stéphane Piednoir, o senador que está por trás da emenda, negou a acusação de que ela fosse dirigida diretamente contra os muçulmanos, afirmando que o foco eram todos os emblemas religiosos conspícuos. Mas ele reconheceu que o projeto de lei tinha sido motivado pelo uso do véu muçulmano, que definiu como "um veículo de propaganda" para o islamismo político e uma forma de "proselitismo visual".

Piednoir também criticou a exibição de tatuagens católicas por Neymar, o astro do Paris Saint-Germain, definindo-as como "infelizes", e cogitou publicamente estender a proibição a elas.

A emenda terminou rejeitada pela maioria governista no Legislativo, ainda que não sem atrito. A polícia de Paris proibiu um protesto organizado pelo Les Hijabeuses, e o ministro do Esporte da França, que disse que a lei permite que mulheres joguem usando hijabs, entrou em confronto com colegas do governo quanto ao lenço de cabeça.

A batalha das Hijabeuses pode não ser popular na França, onde 60% das pessoas apoiam a proibição ao uso de hijabs nas ruas, de acordo com uma recente pesquisa de opinião pelo instituto CSA. Marine Le Pen, candidata presidencial de extrema-direita que enfrentará o presidente Emmanuel Macron no segundo turno das eleições presidenciais, em 24 de abril –e tem chance de vitória–, já declarou que, se eleita, proibirá o uso do véu islâmico em lugares públicos.

Mas no campo de futebol todos parecem concordar em que os hijabs deveriam ser autorizados.

"Ninguém se incomoda se elas jogam com o hijab", disse Rana Kenar, 17, jogadora do Sarcelles que estava em campo para enfrentar o clube de Diakité, em uma noite gélida de fevereiro.

Kenar estava sentada na arquibancada com 20 outras jogadoras. Todos disseram ver a proibição como uma forma de discriminação e apontaram que nos jogos amadores a proibição não era rigorosamente aplicada.

Mesmo o árbitro da partida que permitiu que Diakité entrasse em campo parecia insatisfeito com a proibição. "Eu fiz que não vi", disse, recusando-se a revelar seu nome para evitar repercussões.

Pierre Samsonoff, antigo vice-presidente da divisão amadora da Federação Francesa de Futebol, disse que a questão voltará inevitavelmente a surgir nos próximos anos, com o desenvolvimento do futebol feminino e a posição de Paris como sede das Olimpíadas de 2024, que envolverá atletas de países muçulmanos.

Samsonoff, que inicialmente defendia a proibição do hijab, disse que mais tarde abrandou sua posição, reconhecendo que a regra significaria excluir as atletas muçulmanas. "A questão é se não estamos criando consequências piores ao decidir proibir o hijab em campo do que se decidirmos permiti-lo".

O senador Piednoir disse que as atletas é que excluem a si mesmas. Mas reconheceu não ter conversado com nenhum esportista que use o hijab para se informar sobre suas motivações, comparando a situação a "pedir que um bombeiro converse com um piromaníaco".

Dembele, que administra as contas de mídia social do Les Hijabeuses, disse que às vezes fica chocada com a violência dos comentários online e a oposição política feroz.

"Nós continuamos batalhando", disse. "Não só por nós, mas pelas meninas mais jovens que amanhã poderão sonhar jogar pela França, pelo PSG."

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