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Copa do Mundo

França foi do 'triunfo do multiculturalismo' ao do 'bom migrante'

Descendentes de imigrantes compõem parte da seleção desde os anos 1980

São Paulo

Julho de 1998, a França celebrava a sua primeira Copa do Mundo. O meia Zinedine Zidane, marselhês do povo cabila, do norte da Argélia, era o novo ídolo nacional. O lateral-direito Lilian Thuram, natural da Guadalupe, ensaiava os seus primeiros passos como intelectual público da causa negra.

Jogando em perfeita harmonia com Emmanuel Petit, eles formavam a seleção “black-blanc-beur” (negro, branco e árabe), em vez da tradicional “bleu blanc rouge” (azul, branco e vermelho).

Os descendentes de imigrantes compõem grande parte do time francês desde os anos 1980. Do 11 que derrotaram o Brasil em 1986, Luiz Fernandez tinha ascendência espanhola, Yannick Stopyra polonesa, e a estrela Michel Platini italiana. O que conferia um componente político à seleção de 1998 era a presença de muitos jogadores das antigas colônias. Com o sucesso na Copa, a França, dizia-se, tinha finalmente entrado na era do multiculturalismo.

A ilusão durou pouco. Em outubro de 2001, poucos meses antes da chegada do candidato de extrema direita Jean-Marie Le Pen ao segundo turno das presidenciais, a França enfrentava a Argélia em Paris.

Depois de assobiarem copiosamente o hino francês, provocando a saída do presidente Jacques Chirac, os torcedores invadiram o campo, obrigando o juiz a encerrar a partida antecipadamente. Era o prenúncio de uma década de malaise no futebol francês.

Em 2006, depois das revoltas contra a morte de um adolescente por policiais que incendiaram o país, o candidato à presidência Nicolas Sarkozy prometeu limpar com lava jato os subúrbios.

A tensão social chegou rapidamente ao campo de futebol. Karim Benzema, artilheiro do Real Madrid, insistiu em não cantar o hino nacional. O muçulmano Franck Ribéry, principal referencia da seleção na altura, reclamou publicamente da discriminação da qual se dizia vitima, e Nicolas Anelka passou a ser visto na companhia de Dieudonné, um antissemita disfarçado em humorista.

Em 2010, a seleção francesa se desintegrou na África do Sul. Depois de Anelka ser excluído do time por insultar o técnico Raymond Domenech, os jogadores se recusam a sair do ônibus para treinar. A famigerada “greve do ônibus” é lembrada como o ponto mais baixo da historia do futebol francês.

Os culpados foram rapidamente designados. Em 2011, o novo técnico Laurent Blanc sugeriu, em conversa privada com um oficial da federação francesa de futebol, que a França tinha de desistir dos jogadores “grandes, fortes e poderosos”, numa referencia ao excesso de blacks.

Talvez ainda mais grave, Blanc levantou a possibilidade de limitar a presença de binacionais nos escalões inferiores sob o argumento de que muitos acabavam jogando por outra seleção.

Com essas declarações polemicas, o capitão da seleção de 1998 encarregou-se de declarar o fim na reconciliação nacional que a sua geração tinha ajudado a construir.

A chegada do atual técnico, Didier Deschamps, apaziguou os ânimos. Ele trocou os indomáveis Benzema, Ribéry e Anelka pelos afáveis Paul Pogba, Ngolo Kanté e, sobretudo, Kylian Mbappé.

Essa jovem equipe que se prepara para disputar a sua segunda final consecutiva depois da Eurocopa é a cara da França idealizada pelo presidente Emmanuel Macron.

Tal como o maliano que escalou um prédio em Paris para salvar uma criança semanas atrás, os jogadores bem-comportados são elevados a modelos da nação.

Os malcomportados olham para o precedente Benzema e sabem que o bom desempenho não chega para garantir um lugar. Na França de Macron, as portas estarão sempre abertas para aqueles que souberem respeitar as regras.

Em 20 anos, a França passou do mito do “triunfo do multiculturalismo” ao mito do “bom migrante”.​

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