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Solidão para mulher é libertadora, diz Tamara Klink, que passou oito meses sozinha no Ártico

Velejadora foi a primeira mulher brasileira a cruzar o Círculo Polar em uma jornada solo

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São Paulo

Antes de embarcar para sua mais longa jornada solo até hoje, Tamara Klink, 26, foi desencorajada.

Quando a velejadora contava para caçadores, pescadores e navegadores do Ártico sobre o seu projeto de passar o inverno sozinha e isolada na região —seguindo os passos do pai, Amyr Klink— ouvia que se tratava de um plano perigoso e que devia ser reavaliado.

Tamara Klink passou oito meses em isolamento durante o inverno do Ártico, entre outubro de 2023 e junho de 2024 - Pola Ryse

As dúvidas mexeram com Tamara. "Se até pessoas que vivem na região, são mais velhas, mais fortes e experientes achavam que se tratava de uma aventura audaciosa, será que estou sendo audaciosa demais? Será que deveria dar ouvidos a elas?"

Então, ela decidiu fazer algo que não costuma: não ouvir os locais e seguir o projeto. Foram 15 meses de preparação e mais oito até cumprir o objetivo de viver em autonomia no mar congelado durante o inverno polar. Seu isolamento terminou em meados de junho deste ano.

A missão começou na França, de onde partiu em julho do ano passado. Depois, navegou sozinha por 20 dias até a baía Disko, na costa oeste da Groenlândia. Ela lidou com icebergs, neblina, correntes fortes, ventos, cartografias precárias e problemas técnicos.

Lá, escolheu um fiorde inabitado e, em outubro, começou o período de isolamento a bordo de um pequeno veleiro de aço, apelidado de Sardinha 2. Ela reconhece que seu isolamento pode ser estranho para as pessoas, mas diz que o período foi libertador.

"Temos a ideia de que o isolamento é ruim, desagradável, indesejado e uma espécie de punição", diz ela, que entende o perigo, mas considera que a solidão em um ambiente como o que estava não aumenta a exposição ao risco, mas a "dificuldade de resolução de problemas caso isso aconteça".

Tamara reflete que o período foi divertido e foi um desafio encontrar um lugar para ficar só. Para isso, teve que navegar para um local distante e remoto.

"Minhas preocupações eram minha sobrevivência e meu prazer", diz. "Para uma mulher, isso é muito libertador. A gente coloca tanta energia em agradar para ser ouvida, para ser amada, respeitada, que ter que agradar apenas a mim foi muito fácil."

O preparo de Tamara para o período de isolamento incluiu uma equipe com nutricionista, médicos, psicóloga, meteorologista, além de gestores de projeto, conteúdo e artista plástica —ela encaminhava e-mails à sua equipe durante a jornada, e os textos foram posteriormente publicados nas redes sociais acompanhados de pinturas da artista Maria Klabin.

A velejadora conta que percebeu ao longo do período que estava preparada para enfrentar o desafio a que se propôs e imaginou uma dificuldade ainda maior do que aquela que enfrentou. O escuro não foi tão escuro, ela estava com equipamentos necessários para o frio e descobriu que tinha mais recursos do que imaginava.

Ao todo, ela passou três meses sem ver o sol, quatro meses sem ver nenhum ser humano e seis meses presa no gelo. No período mais frio, as temperaturas variavam entre -20°C e -40°C. Durante os passeios, seus cílios e nariz ficavam com pedras de gelo.

Para comer, o estoque incluía grãos, féculas, sementes, conservas de legumes e frutas desidratadas. A fim de evitar a produção de lixo, ela pescou e, quando o mar congelou, as raposas roubavam os peixes.

No período, ela lembra que tinha que se atentar às roupas que usava para manter o corpo aquecido e à forma como ela se movimentava também.

"Eu sabia de que maneira andar para o meu corpo se aquecer e o que não fazer também. Não podia ficar parada e exposta ao vento ou meu corpo ia esfriar muito rápido. Se eu parasse, tinha que ser por períodos curtos, e tinha que continuar andando", lembra ela, que também não podia aquecer demais a ponto de transpirar porque, se isso acontecesse, o corpo esfriaria muito rápido.

Entre os desafios enfrentados, ela descobriu que tem urticária ao frio. A condição médica causa alergia quando exposta às temperaturas baixas e, além da coceira, também levava inchaço nos dedos dos pés. Tamara também caiu no mar congelado.

Mesmo com um kit completo de primeiros socorros, não tinha um grande estoque de antialérgicos. "Preparar um barco é fazer escolhas, e o desafio é esse."

Diante da condição, teve que se adaptar, e um dos hábitos que adquiriu foi nunca pisar no chão do barco. Para evitar a urticária, estava sempre andando pelas beiradas dos móveis para manter os pés aquecidos e mais para o alto.

No barco, a temperatura variava. Mas, se estava 10°C na altura do pescoço, no pé podia chegar a -5°C. Por isso, evitar o contato do pé com o chão foi a solução. Também costumava pendurar o pé em cima do aquecedor e, em alguns momentos de lapso, deixava o pé cair e criou alguns furos nas meias. Na hora de dormir, manteve uma bolsa de água no fundo do saco para manter o aquecimento dos pés.

Já em relação ao episódio em que ela caiu na água congelante, Tamara afirma que não foi "nada demais esse acontecimento", mas que é importante lembrar que existem perigos e riscos.

Ela conseguiu sair da água fazendo buracos no gelo para conseguir sair da água, uma técnica de escalada. Este momento, diz Tamara, foi uma confirmação do seu preparo. "O que aconteceu depois [da queda], para mim, foi algo muito positivo. Conseguir sair desses acidentes e não vivê-los duas vezes é o mais importante."

Com a chegada da primavera, o mar descongelou, a fauna e flora do local mudaram e ela teve que lidar, por exemplo, com a chegada de mosquitos —muitos deles. Foi neste período que voltou a se encontrar com pessoas.

Entre os primeiros encontros, Tamara reviu os caçadores, alguns daqueles que tentaram a desencorajar do projeto. Mas, naquele momento, eles questionavam como foi o inverno para ela e onde estavam os animais. Neste novo encontro, ela era a pessoa que conhecia o local, já eles, os visitantes.

Agora, a velejadora está passando um tempo em um vilarejo na Groenlândia, ainda sem data para voltar. Não há registros de que outras mulheres passaram pela invernagem sozinhas. Por isso, é tida como a mulher brasileira e a mais jovem navegadora do país a cruzar o Círculo Polar Ártico em uma jornada solo, seguindo os passos do pai, Amyr Klink.

"Talvez, se eu tivesse tido um relato feminino para usar de referência, eu teria duvidado menos de mim, perdido menos energia me questionando se era uma loucura, se eu era capaz e se meu gênero era uma limitação."

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