Voz singular de Maria Lúcia Alvim retorna depois de longa ausência
Reflexão da poeta prefere, ao invés dos grandes temas universais, os elementos rotineiros do campo
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A vida tem desses encantos. Uma poeta entrega seu livro a fulano com a indicação de que seja publicado só depois de sua morte. Fulano mostra o livro a sicrano, que convence a poeta a publicar em vida. A poeta é Maria Lúcia Alvim. Fulano, Paulo Henriques Britto. Sicrano, Ricardo Domeneck. O livro, "Batendo Pasto".
Maria Lúcia Alvim nasceu na cidade de Araxá, em Minas Gerais. Hoje vive em Juiz de Fora e em outubro completará 88 anos. Irmã de Maria Ângela Alvim e de Francisco Alvim, forma a trindade da família Alvim na poesia contemporânea brasileira.
Seus cinco primeiros livros passaram praticamente em branco. Mereceram registro quando integraram a coleção "Claro Enigma" no volume "Vivenda (1959-1989)". Depois disso, nada mais publicou. Guilherme Gontijo Flores, no prefácio, não deixa de se espantar com o longo tempo em que ela esteve ausente da cena literária nacional. Justo ela, uma de nossas vozes mais singulares.
Em "Batendo Pasto", a sonoridade e o vocabulário do campo, uma quase semântica rural, são marcas constantes. Há nos poemas, como “Litania da Lua e do Pavão”, um ludismo sonoro do tipo trava-línguas, palavra puxa palavra, jeito infantil de brincar com os sons, jeito onírico de lidar com o corpo das palavras, quase surreal, intertexto literário e mitológico. Mais as delícias de todas as idades –os neologismos.
Entre versos livres, sonetos, tercetos, quadras, sextilhas, Alvim espalha ternura, humor e ironia. “O amor/ do galo e da galinha/ ele/ bélico/ ela/ abúlica.” A inusitada união sentimental entre aves do quintal é por si hilária. Ao mesmo tempo, vogais abertas e rimas toantes de palavras proparoxítonas reverberam o exótico e o trivial com o sarcasmo do galo guerreiro e a falta de disposição da galinha. Sugestão de torneio galináceo em quintal mineiro.
Em outro poema, de só dois versos, o eu se descontrói diante do desconhecido. “Pleitear o Mistério me deixou desfigurada./ –Ninguém te viu, tiziu." A linguagem vai da contemplação do mistério ao salto concreto do pássaro tiziu. Ou, quem sabe, da contemplação à mera interjeição do dito popular. “Ninguém te viu, tiziu.” De toda forma, o eu se desestrutura em parcas palavras.
Dentre os aforismos, a reflexão filosófica prefere, em vez dos grandes temas universais, os elementos rotineiros do campo, a cobra, o rio, a noite.
“Fui mordida de cobra assim no limpo.” “Vou remando, aluada, vou luxando.” “Candiar é questão de afinamento.” Vocábulos e expressões rurais com sentidos, muitas vezes, além dos dicionarizados. O uso particularizado do advérbio assim, ampliando a extensão geográfica do espaço; o verbo luxar enquanto desfrutar; candiar como prover o lampião de combustível et cetera.
Quando se toma o curral como realidade bruta, palpável, olfativa e até incômoda, ali a poeta enxerga o avesso. “Curral/ é onde o real/ passa por cima.”
“Angelim” possui só um verso. A concisão pipoca com a beleza das flores da imensa árvore que empresta seu nome ao poema. “O carinho é um outro caminho do corpo.”
A palavra “outro” divide o verso ao meio. Ela é seu eixo. Ela permite permutabilidade do "R" e do "M" das palavras carinho e caminho. Com o movimento rotatório do eixo se tem a perenidade dos sentimentos aos quais o poema se refere.
Vocabulário do campo, uso de línguas estrangeiras (e mortas, como o latim), neologismos, humor, amor, erotismo, jogos sonoros, jogos de ideias, aforismo, irreal, o concreto e o inesperado. Eis um pouco de Maria Lúcia Alvim. Uma poeta que tem o que dizer. E a forma feliz de o dizer.
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