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Dona Onete reforça, em 'Bagaceira', que palavras são feitas para cantar

Na pena da artista, o vocabulário é mais do que cor local, é testemunha do processo cultural que moldou o português

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Bagaceira

Avaliação:
  • Onde: Nas plataformas digitais
  • Autoria: Dona Onete
  • Produção: Assis Figueiredo e Marcos Sarrazin

"Bagaceira", Dona Onete explica, é um termo que designa fim de festa. Mas no dicionário da cantora e compositora paraense —e do universo popular que, ao completar 85 anos, ela domina e representa—, fim de festa não é pejorativo, indicativo de farra decadente. É o oposto disso.

Bagaceira é quando a coisa fica boa, pés já sem sapatos, as etiquetas e travas sociais deixadas de lado em nome da alegria, que reina soberana e sincera. "Bagaceira", recém-lançado quarto disco de Dona Onete, materializa essa alegria pura e desarmada em dez músicas, todas compostas por ela, que se espalham por 38 minutos num passeio por diferentes gêneros do cancioneiro paraense, do boi ao brega, do banguê ao carimbó.

A cantora de carimbó paraense Dona Onete - André Seitti/Divulgação

Pura, desarmada. Nada é ingênuo, porém, em "Bagaceira". Muitas vezes —mal— entendida como naïf, "raiz", "autêntica", uma figura "do povo" que reproduz "tradições" do Norte, Dona Onete é, pelo contrário, artista com "A" maiúsculo, pensadora cultural que apreende o mundo que a cerca e o elabora em forma de canção, processando, recriando e inventando tradições. Seu novo disco é a confirmação dessa natureza que ela mostra desde o início —tardio, aos 73 anos— de sua carreira.

"Bagaceira" expõe uma gramática poética e musical, um universo imagético e sonoro, personagens e cenários —a assinatura de Dona Onete. Elementos que, pelas suas mãos, desenham um Pará tão documental quanto deliberadamente construído, tal qual a Mangueira de Cartola, o Pernambuco de Alceu Valença e a Bahia de Dorival Caymmi.

Já na primeira faixa, que dá nome ao disco, aparecem alguns desses elementos. A música de Dona Onete não raro confunde os limites da representação e da coisa em si. Ou seja, a festa da qual fala "Bagaceira" não é apenas contada na canção, é realizada ali —os gritos de "ê", a dinâmica explosiva do arranjo emulando a dinâmica da própria farra com instrumentos entrando e saindo, o ritmo mudando de banguê para brega no verso que diz "toca brega".

Procedimento semelhante se repete em outras canções. Em "Chamego Caboclo", Dona Onete canta "o choque do poraquê" —peixe-elétrico da bacia amazônica— separando as sílabas, "cho-que", como se lançasse na palavra a descarga elétrica do animal. Já no carimbó "Curió Cantador", ela alonga a nota da palavra "voou". O efeito sugere o próprio voo do pássaro, sumindo no horizonte.

"Festa no Ver-o-Peso" lança olhar carinhoso e debochado de quem conhece e entende aquela feira à beira-rio de Belém. Na canção, a elegante garça namoradeira, que Dona Onete descreve como "fit, light, diet e society", convive ali com o urubu, o rato, a barata, a mosca e a formiga, quinteto que comanda a música da tal festa. Com direito a onomatopeia para o som de cada um. Espécie de "O Pato" da bossa nova sem o selo da vigilância sanitária.

Na pena de Dona Onete, o vocabulário é mais do que cor local, testemunha do processo cultural que moldou o português da região Norte. Palavras como "popopô", "pitiú", "pavulagem" e "tamaguaré" são exploradas em sua força imagética e em sua musicalidade, na delícia de suas sílabas. Em nenhum momento a artista perde de vista que suas palavras nascem para serem cantadas.

A repetição de uma palavra é outro recurso comum em suas canções, com efeito sempre eficaz. Seu primeiro sucesso, "Jamburana", tinha "o jambu treme, treme, treme, treme, treme". No novo disco, há vários exemplos —"minha paixão é cabocla, é cabocla, é cabocla, é cabocla", em "Paixão Cabocla", ou em "essa mulher vem chegando, chegando, chegando, chegando, chegando", em "Lunlambumbarió".

A atuação de músicos como Pio Lobato, Marcos Sarrazin e Felix Robatto dá consistência ao Pará de Dona Onete. Íntimos das linguagens paraenses, eles são ao mesmo tempo inventivos e precisos no trato das harmonias simples e melodias diretas, típicas dos gêneros populares que a compositora explora. Frases de sax saltitantes, mão direita nervosa nas guitarras e banjo, baixo marcando o diálogo irresistível com a percussão e a bateria.

Calor em forma de música. Calor e umidade também se mostram de forma evidente na porção sensual e romântica do repertório, outra marca de Dona Onete —apelidada, não à toa, de rainha do carimbó chamegado. O brega abolerado de "Feitiço da Lua" e o brega jovem guarda de "Avesso do Avesso", canções de dores do amor, são bons exemplos.

Mais quentes e úmidas são "Banguê Latino" e "Paixão Cabocla", que busca metáforas amazônicas para dar conta de descrever o desejo —"toda vez que eu vejo você/ o meu corpo se desloca/ nas ondas da pororoca". Síntese simbólica da integração entre paisagem e artista que se mostra em Dona Onete — no que ela tem de essência e, sobretudo, de elaboração.

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