Siga a folha

Descrição de chapéu
Livros

Jeovanna Vieira faz um dos melhores livros de estreia dos últimos anos

Espiral de um relacionamento abusivo é retratada em 'Virgínia Mordida' com a segurança de uma autora experiente

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Camila von Holdefer

Tradutora e pesquisadora dos institutos de filosofia e neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

VIRGÍNIA MORDIDA

Avaliação:
  • Preço: R$ 79,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria: Jeovanna Vieira
  • Editora: Companhia das Letras

A personagem-título de "Virgínia Mordida" não é ingênua, inexperiente ou vulnerável. Advogada carioca bem-sucedida de 30 e tantos anos, ela mesma se define como "sagaz da vida". Ainda assim, acaba em um relacionamento abusivo.

Jeovanna Vieira estreia com 'Virgínia Mordida', publicado pela Companhia das Letras - Thais Alvarenga/Divulgação

Ela conhece Henrí numa festa, e os dois logo decidem morar juntos. Ele coleciona traumas de infância, é um pretenso ator desocupado e preenche o tempo livre promovendo rinhas de galo.

É um ponto de partida pouco promissor e, daí em diante, é ladeira abaixo: os comentários em tom de brincadeira não demoram a se tornar perturbadores, começam as tentativas de monitorar e controlar Virgínia, seguidas de escândalos e ofensas, e a chantagem emocional se instala.

Henrí parecia "pueril e raso quando conversava com adultos" e, em público, Virgínia vira a "tutora de um homem de 40 e tantos anos". Ela não quer ser associada aos comportamentos e opiniões constrangedores dele, mas também não quer ofendê-lo. Acuada, prefere se afastar dos amigos e da família.

Um relacionamento abusivo costuma provocar nos que estão de fora uma espécie de perplexidade. É o caso das pessoas próximas a Virgínia, peças fundamentais aqui: à medida que a protagonista perde a própria identidade em uma espiral de dor e confusão cada vez mais vertiginosa, elas estão lá para lembrá-la (e mostrar ao leitor) de onde ela veio e quem é.

A estreante Jeovanna Vieira faz isso sem jamais abandonar a narrativa em primeira pessoa de Virgínia, o que é um trunfo técnico: equilibrando a duplicidade com a segurança de uma autora experiente, Vieira faz com que Virgínia ouça sem ouvir as opiniões das amigas Penélope e Dóris e saiba sem saber o que a mãe e as tias pensam de Henrí.

O que Virgínia absorve é seletivo. O leitor, porém, entende o panorama mais completo.

Vieira quer mostrar, em primeiro lugar, que Virgínia é uma mulher rodeada de amor. A família tem na matriarca Benedita suas raízes sólidas, e seus membros encontram uns nos outros sua sustentação e seu vigor. "Nenhum galho de Benedita se permitiria passar por essas merdas" pelas quais Virgínia agora passa, "sob olhares incrédulos".

Henrí, com comentários e atitudes que desrespeitam a árvore de Benedita, é o homem branco insensível e invasivo, o "corpo inconveniente" que Virgínia leva para perto dos seus.

A questão racial é apenas um dos focos de tensão em um relacionamento em tudo problemático. Para entender a protagonista, é preciso entender que ela é uma mulher negra que aprendeu desde pequena, com uma família gregária e uma mãe militante, a se orgulhar de sua ancestralidade em um país racista.

É por isso que a metáfora dos cabelos é tão bonita, pois põe no centro da narrativa a cena de uma mãe que penteia a filha com delicadeza para que o processo não seja doloroso —porque não quer vê-la machucada.

Até mesmo a agilidade da narrativa tem um propósito, uma vez que tudo se sucede num vórtice que arrasta a própria protagonista —e é essa perda de controle, acompanhada de uma tentativa de se reorientar, que ela narra.

As descrições de Vieira não poupam o leitor do constrangimento e do horror das cenas provocadas por Henrí —uma delas dá origem ao título do livro—, nem do olhar de Virgínia, que mistura muito bem o autoengano com lampejos de lucidez.

"Levar aquele homem para casa é como recolher o cocô do cachorro na calçada. Muito mais um ato cívico para que as outras pessoas não se sujem do que vontade de ir com ele a qualquer lugar", diz ela.

Uma combinação de inércia e esperança mantém Virgínia presa àquele amor que, achava ela, "algum dia seria estável e seguro". O senso-comum garante que a racionalidade é algo apartado das emoções, e que, se quiser de verdade, você pode se guiar pela lógica pura. "Virgínia Mordida" mostra a falsidade dessa visão sem jamais precisar dizer isso aberta, didaticamente.

Há bons romances de estreia de autores de quem você não necessariamente quer ler o segundo. Não é o caso de Vieira, que sabe narrar e narra sem medo, que não facilita a vida do leitor e (graças a Deus) não escreve em prosa poética. Que o próximo venha logo. Não é exagero dizer que é uma das melhores estreias dos últimos anos.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas