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Descrição de chapéu Memorabilia

Deborah Colker viu história de seu neto no filme 'Extraordinário'

Protagonista da obra evocou na coreógrafa lembranças de Theo, 8, que tem doença de pele rara

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Deborah Colker

Todo mundo já tinha visto "Extraordinário". E o que eu ouvia falar era: um filme emocionante, comovente e lindo. De início, fiquei com medo de assistir. Minhas lágrimas já secaram há tempos e tive medo de tamanha emoção.

Há oito anos nascia meu neto, Theo. Ele era uma criança linda e normal, mas percebemos uma alteração na sua pele, em algumas partes de seu corpinho.

Deborah Colker tira selfie com seu neto Theo - Arquivo pessoal

Num primeiro momento não houve diagnóstico e movimentamos montanhas para descobrir o que era. Depois de 24 horas, que pareceram 2.400, ficamos sabendo que era uma condição rara, uma mutação genética que causa a falta de colágeno 7, proteína responsável por colar a derme à epiderme.

Epidermólise bolhosa distrófica recessiva —escrevi esse nome num papel e passei um mês para decorar. Nome grande, feio e difícil. Nos EUA, chamam de "butterfly skin" (pele de borboleta); no Chile, é "piel de cristal".

Não havia muito conhecimento sobre ela e eram inexistentes os caminhos de tratamento. Nos primeiros meses, a gente não sabia como sobreviver a cada dia.

Quando finalmente assisti ao "Extraordinário", pensei: é sobre a gente, é sobre Theo.

Auggie, protagonista do filme "Extraordinário", de Stephen Chbosky - Divulgação

Em nenhum momento eu achei o Auggie, o protagonista, estranho. Ele é uma simpatia. Engraçado e espirituoso. Por vergonha e timidez, está sempre cabisbaixo e desenvolve uma percepção para conhecer as pessoas através dos sapatos.

A graça do meu neto está lá. Em uma cena, um amigo pergunta se Auggie pensa em fazer uma plástica e ele responde que aquele rosto já era resultado de muitas: "Como você acha que estou lindo assim?".

Adorei como o filme mostra as crianças que não ligam, que gostam dele, que se modificam através do Auggie. E ao mesmo tempo tem o garoto chato, implicante e que tem uns pais pouco evoluídos —podemos até dizer ignorantes— em relação à vida.

É um filme que chacoalha os valores estéticos, os padrões vigentes e nos coloca diante do diferente. E o diferente não é feio; ele é simplesmente diferente.

É para isso que a arte existe: para melhorar o mundo e nos tornar mais humanos, entendendo que a força e a fragilidade caminham juntas. Há uma ideia absurda de normalidade com que estamos acostumados, que impõe valores a uma sociedade desesperada. Que descarta as individualidades. Somos todos raros, e essa percentagem é absoluta. Cada um é 100%.

A mudança de percepção que tive com o Theo foi brutal. Minha atenção e meu interesse foram se modificando a cada dia. Sobre o que é lutar, o que é aceitar, o que é não desistir, o que é a cura. E a cada dia eu só tinha a agradecer.

Essa questão começou a entrar no meu trabalho.

No ano passado montei "Cão sem Plumas", espetáculo baseado no poema de João Cabral de Melo Neto que fala sobre o inconcebível. Que fala de um homem mastigado, enganado, de quem roubam até o que ele não tem. Mas esse homem é resistente, teimoso, guerreiro. A fruta que, depois de atravessada pela espada, continua a produzir seu açúcar.

O espetáculo é sobre a pele. Todos os dançarinos são cobertos de lama. Nem homem nem mulher, nem bonito nem feio.

Com o tempo percebi que a exuberância vem junto com a tragédia. Passei a prestar mais atenção em onde está a verdadeira riqueza. Quem eu achava lutador, vencedor, passei a considerar básico —o mundo está organizado para as condições humanas perfeitas, então ser guerreiro é outra coisa.

Morreu recentemente o Stephen Hawking, um cara a quem disseram a mesma coisa que ao Theo: não tem cura, não há nada a fazer. Quando Hawking descobre, aos 21, que tem ELA (esclerose lateral amiotrófica), dão a ele três anos de vida. E ele morre aos 76! E mudando o mundo. Essa foi a cura dele: a luta dele, a missão dele.

A evolução da civilização se dá pelas pessoas especiais. As grandes mudanças são feitas por aqueles que não são aceitos, que têm que criar adaptações para poder sobreviver.

Por isso, "Extraordinário" é um filme extraordinário. Que traz o amor, a amizade e a missão de nunca desistir. A força da natureza humana, do mar, do céu, da terra, da mãe.


Deborah Colker, 57, é bailarina, coreógrafa e diretora artística da companhia de dança que leva seu nome.

Depoimento a Walter Porto.

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