Plano de Putin para se manter no poder mostra força, mas também seus limites
Sob pressão econômica, russo precisa manter popularidade para seguir liderando
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Para o observador do noticiário internacional, o anúncio de que o presidente Vladimir Putin lançou um plano para manter seu controle sobre a Rússia após o fim de seu mandato atual, em 2024, pareceu algo casual.
É o que acontece em ditaduras e autocracias mundo afora, afinal. Em 2018, o líder chinês, Xi Jinping, não só viu seu nome ser entronizado na Constituição do país como aboliu o limite para reeleger-se como chefe do Partido Comunista.
O regime chinês é crescentemente totalitário, mas tem nuances, que são exploradas diariamente por manifestantes em Hong Kong.
A Rússia, cuja identidade é dividida entre o nacionalismo eurasiano e uma vanguarda ocidental desde quando era regida por czares, é ainda mais complexa.
Isso leva a uma constatação sobre a mudança constitucional que Putin vai promover: ela mostra o amplo poder do presidente, mas também os temores que o limitam.
Pela proposta inicial, que já tem até um grupo de trabalho, a Constituição de 1993 seria modificada em dez pontos.
No cerne, o enfraquecimento do poder presidencial e o aumento daquele que emana do Parlamento, por meio de um premiê mais forte.
Além disso, faz parte da proposta transformar o Conselho de Estado, um órgão consultivo figurativo, em instância executiva semelhante ao antigo Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética —que preconizava líderes regionais robustos e lealdade ao centro político.
A leitura óbvia é a manutenção de Putin no poder, seja como “superpremiê” ou, mais provavelmente, mantendo seu posto de chefe de um Conselho de Estado anabolizado.
Duas outras sugestões se destacam: colocar a Constituição russa acima de leis internacionais e a indexação do reajuste do salário mínimo e das pensões à inflação.
A primeira ideia visa proteger membros do regime de sanções, em especial de cortes europeias. É um seguro contra medidas futuras, típico de sistemas que esticam suas interpretações e usos das leis. Mas também um recibo de temor.
Já a segunda fala sobre outro medo: o de que a entropia econômica russa acabe por solapar o putinismo.
O presidente é cioso da história, e sabe que o fim da União Soviética (1917-1991) derivou muito da incapacidade de o regime sustentar-se.
Desde a recessão de 2015-16, o país não consegue crescer a mais de 2% ao ano. Segundo o Serviço Federal de Estatísticas, quase 14% dos 144 milhões de russos vivem abaixo da linha da pobreza, e a insolvência de pessoas físicas subiu 57% de 2018 para 2019.
Apesar de a inflação geral estar domada, até pela letargia da economia, que também sofre com sanções devido à anexação da Crimeia em 2014, preços ao consumidor estão altos. O do leite subiu 25% de 2017 para setembro de 2019; o do pão, 21%.
Putin busca então ofertar medidas populares e populistas, e em seu discurso do estado da União defendeu o aumento do investimento público de 21% para 25% até 2025 usando recursos de fundos soberanos.
Ele também sugeriu medidas contra o declínio populacional, que em 2019 foi o maior em uma década. Mais dinheiro: programas para incentivo a famílias maiores, que ao todo somariam estimados R$ 32 bilhões ao ano.
Há cálculo político imediato: em 2021 haverá eleição para a Duma, a Câmara dos Deputados russa. E o partido governista, o Rússia Unida, está com apenas 30-35% de aprovação da população. Putin age como um czar, contando com uma rede de lealdades que disputam poder entre si.
Só que seu ativo central ainda é a popularidade. Com toda a crítica externa e manifestações frequentes desde 2017, Putin ainda tem 68% de aprovação, segundo o independente Centro Levada.
Ninguém na elite tem isso, mesmo políticos prestigiados como o ministro Serguei Choigu (Defesa). Sem popularidade, Putin fica vulnerável entre os seus —que incluem os egressos dos serviços secretos como ele e as Forças Armadas, além de todo o poderoso setor energético.
Se o país sofrer uma debacle na economia, Putin pode ser desafiado por dentro do sistema. Por toda a sua magnitude, os protestos majoritariamente de classe média que enfrenta ainda não foram capazes de forjar uma liderança política viável.
Mesmo o arranjo feito para a transição que se desenha, com um premiê tecnocrático e inexpressivo escolhido no lugar do ex-presidente e aliado Dmitri Medvedev, indica que Putin quer garantir o controle de todo o processo.
Neste episódio, Medvedev, que saiu da obscuridade para a Presidência para esquentar a cadeira para o então premiê Putin de 2008 a 2012, foi visto como grande derrotado. Tudo indica que não é verdade.
“O papel dele sempre foi o de ser o cara que se dá mal. É seu trabalho e ele o faz bem”, avalia Sam Greene, diretor de estudos russos do King´s College, de Londres.
Para Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou, Medvedev pode até voltar como o presidente fraco sugerido pela reforma. Acabaria eleito por gravidade, mesmo tendo uma impopularidade de 64% segundo o Levada.
“Putin seria o chefe do Conselho de Estado, com [o novo premiê Mikhail] Michustin ocupando o papel de gerente tecnocrata do governo”, especulou Kolesnikov.
Aí, Medvedev cumpriria a contento o papel que Greene reserva a ele, enquanto Putin imita o ditador cazaque que virou “Líder da Nação” ao renunciar em 2019 e seguir dando as cartas.
Seja qual for o desenho final, é certo que Putin precisa manter sua popularidade estabilizada. Obviamente, o mais provável é que consiga.
Mas a dinâmica mostra que o regime é menos monolítico do que aparenta do lado de fora. Os protestos contra a flagrante perseguição a candidatos de oposição nas eleições locais do ano passado levaram a uma derrota para Putin em plena Moscou.
Se não é possível dizer que foi um prenúncio, demonstrou o poder da estratégia delineada de campanha pelo ativista Alexei Navalni: muitos dos eleitos eram independentes, e só chegaram lá por não serem do Rússia Unida.
Novamente, parece difícil emular isso em nível nacional. Mas a surpreendente guinada política da semana passada, inusual num sistema que preza a previsibilidade, transparece um Putin com noção de risco maior do que o quadro costuma sugerir.
As dez propostas de Putin
- Limitar o mandato presidencial a dois termos
- A Duma (câmara baixa) apontará o premiê, seus adjuntos e ministros, e o presidente não pode vetar
- Transformar o Conselho de Estado em órgão executivo
- Constituição se sobrepõe a tratados internacionais
- Só quem morou na Rússia nos últimos 25 anos pode ser presidente
- Proibir autoridades públicas de ter segunda nacionalidade ou residência no exterior
- Senadores podem interferir na indicação dos chefes de serviços de segurança
- Senado pode demitir juízes da Suprema Corte
- A Corte Constitucional pode revisar leis do presidente
- Salário mínimo e pensões reajustados pela inflação
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