Putin apresenta plano para ficar no poder após 2024, e premiê da Rússia renuncia

Medvedev sai após presidente pedir nova configuração política; desconhecido assume

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São Paulo

Após quase dois anos de suspense, Vladimir Putin iniciou nesta quarta (15) o plano para organizar sua sucessão como presidente da Rússia —e manter, ao que tudo indica, o poder após deixar o cargo em 2024.

Putin fala ao lado do demissionário Medvedev na reunião em que foi apresentado o novo governo russo
Putin fala ao lado do demissionário Medvedev na reunião em que foi apresentado o novo governo russo - Dmitri Astakhov/Sputnik/AFP

Em seu discurso anual sobre o estado da União, Putin, 67, defendeu um referendo para mudar a Constituição russa. O presidente ficaria proibido de servir mais de dois termos, o primeiro-ministro receberia muito mais poder e seria reforçado o hoje inócuo Conselho de Estado.

O pacote permitiria a Putin seguir no poder, como se especula . Numa hipótese, como "superpremiê". Noutra, mantendo a presidência de uma versão empoderada do Conselho.

Poucas horas após a fala, o premiê russo, Dmitri Medvedev, 54, pediu demissão, em conjunto com o resto do gabinete. Altamente desgastado por denúncias de corrupção e disputas internas no Kremlin, ele tinha sua saída esperada desde que Putin reelegeu-se em 2018.

Para o cargo, Putin escolheu um desconhecido do grande público: Mikhail Michustin, 53, o chefe do Serviço Federal de Impostos (a Receita russa). O movimento pegou observadores de surpresa, já que nomes como o do prefeito de Moscou, Serguei Sobianin, eram mais cotados.

Das duas, uma: ou Putin está apostando num ás em sua manga para formar como sucessor nominal, como ocorreu em sua própria carreira quando Boris Ieltsin o apontou premiê em 1999, ou está apenas indicando um tampão para o cargo.

Com mais quatro anos de mandato, o segundo cenário parece mais provável. E, em qualquer hipótese, ele mantém o controle sobre o premiê, algo que não aconteceria com um nome da densidade política de um Igor Setchin (presidente da Rosneft, a Petrobras russa) ou Serguei Choigu (ministro da Defesa).

“Nós precisamos de um referendo sobre todo o pacote de emendas à Constituição. Nós temos que confiar à Duma (Casa baixa do Parlamento) não só a aprovação, mas a escolha das candidaturas do primeiro-ministro [para vice-premiês e ministros]”, disse o presidente ante uma plateia que reúne governo e parlamentares todo ano.

Vladimir Vladimirovitch Putin é o homem forte da Rússia desde agosto de 1999, quando esse ex-espião da KGB assumiu o cargo de primeiro-ministro. Ocupou interinamente a Presidência na virada do ano 2000, com a renúncia de Ieltsin, e foi eleito em março daquele ano.

Reelegeu-se em 2004 e, em 2008, respeitou o limite constitucional de dois mandatos consecutivos na Presidência. Permaneceu, contudo, no poder: fez o sucessor, Medvedev, e tornou-se um poderoso primeiro-ministro. A relação nem sempre foi perfeita, como quando o presidente não usou seu poder de veto nas Nações Unidas para evitar o bombardeio da Líbia de Muammar Gaddafi, em 2011, para irritação de Putin.

Em 2012, voltou a eleger-se presidente, colocando Medvedev de volta na cadeira de premiê e já com um mandato estendido de quatro para seis anos. Hoje é o líder da Rússia pós-imperial mais longevo desde o ditador soviético Josef Stálin (1878-1953), que ficou 29 anos à frente da União Soviética.

Viu o ápice da contestação interna a seu poder, com manifestações, mas também o auge de sua influência externa, operando a anexação da Crimeia e a intervenção militar na guerra civil da Síria.

Em 2018, reeleito com recordistas 76,7% dos votos, Putin passou a contemplar o futuro e manter em segredo seus planos: se respeitasse as regras atuais, só poderia concorrer à Presidência em 2030, quando fará 78 anos.

Ele pode apenas se aposentar, claro, mas ninguém na Rússia aposta nisso. Inicialmente, especulou-se que ele buscaria uma união com a Belarus para tornar-se um "superpresidente" de dois Estados, mas faltou combinar com o autocrata Aleksandr Lukashenko, 65, no poder desde 1994. A ideia murchou.

Agora, o mapa do caminho desejado por Putin está dado e se assemelha à decisão tomada pelo ditador de outro vizinho ex-soviético, o Cazaquistão. Lá, em 2019, o presidente Nursultan Nazarbaiev, 79, renunciou, mas permaneceu como chefe do partido no poder e do influente Conselho de Segurança.

Putin aparece no telão durante discurso do estado da União, em Moscou
Putin aparece no telão durante discurso do estado da União, em Moscou - Maxim Shemetov/Reuters

Putin ainda disfarçou: “A Rússia deve permanecer uma forte República presidencialista”, afirmou. Ao dizer que “concorda em princípio” com a limitação de mandatos no estilo americano, que permite só uma reeleição, Putin de cara enfraquece qualquer um que o suceder. Ele havia sugerido a ideia bem indiretamente no fim do ano passado.

“O presidente seria [segundo a proposta] obrigado a indicar eles [premiê e vice-premiês]. Ele não poderia rejeitar nenhuma candidatura confirmada pelo Parlamento”, disse Putin. Tal arranjo nunca ocorreu na Rússia desde sua formação como Estado moderno, sob a dinastia dos Románov (1613-1917).

“Foi uma jogada esperta, legalista dentro do possível”, afirmou por e-mail o consultor político Konstantin Frolov. Ele acha que Putin talvez não queira migrar para o posto de premiê, mas sim virar uma espécie de "pai da nação" à frente de um Conselho de Estado com amplos poderes.

Já Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou, especula um cenário ainda mais radical. Segundo ele, Putin pode antecipar eleições para testar uma combinação: ele como "pai da nação", Michustin como premiê e o próprio Medvedev como candidato a presidente.

Mas e a rejeição a Medevedev (de 64%, segundo o Centro Levada)? Para Kolsenikov, a desorganização da oposição formal poderia fazer o cargo cair no colo do ex-presidente com uma vantagem para Putin: toda a insatisfação com o cotidiano do governo também viria no pacote, deixando o "pai da pátria" blindado de críticas. Como o próprio analista nota, o problema do arranjo seria o embate entre dois chefes de Estado, na prática.

Para Kolesnikov, a jogada de Putin não tem precedentes na história moderna russa e soviética. "É ainda mais espetacular do que a renúncia de Ieltsin, que o tornou presidente no réveillon de 2000", disse.

O mais vocal oposicionista ao regime, o blogueiro Alexei Navalni, ironizou o movimento no Twitter. “O principal resultado da fala de Putin: que idiotas (e/ou trapaceiros) são aqueles que disseram que Putin iria sair em 2024”.

Navalni esteve à frente de uma série de grandes protestos desde 2017, mas nunca teve grande apoio popular, segundo pesquisas. Ainda assim, ele foi impedido de concorrer com Putin em 2018, por uma acusação judicial que ele diz ser montada.

O blogueiro pode, contudo, sentir-se vingado: Medvedev sempre foi o principal alvo de suas acusações sobre corrupção. O premiê demissionário não ficará totalmente ao relento e será adjunto de Putin no Conselho de Segurança Nacional.

Seu sucessor, Michustin, que chefiava a Receita desde 2010, é um tecnocrata que implantou o serviço digital de coleta do imposto sobre valor agregado russo. Segundo o jornal Financial Times, de 2014 a 2018, a arrecadação subiu 64% com o sistema, ante 21% de aumento do consumo das famílias.

Desde a reeleição de Putin em 2018, na qual a descrença no sistema político e consequente fastio do eleitorado falaram mais alto que acusações de fraude para o resultado, o presidente vê sua aprovação cair. De estratosféricos 90%, agora ela fica em torno de 65%, segundo sondagens.

Para o Kremlin, isso é pouco. O esquema de poder do presidente sempre se baseou em uma forte aprovação interna, que lhe permitiu manter facções rivais brigando pelo poder abaixo de si —exatamente como os czares e secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética faziam, com maior ou menor sucesso.

O nó está na economia, que patina abaixo de 2% desde que o país saiu da recessão do biênio 2015-16. Ela foi causada pela queda nos preços dos petróleo, um dos carros-chefes do país, e em alguma medida pelas sanções ocidentais devido à anexação da Crimeia e intervenção na guerra civil no leste da Ucrânia.

O discurso de Putin ainda trouxe falas diversas sobre política doméstica. Disse que a taxa de investimento precisa subir de 21% para 25% do PIB (Produto Interno Bruto), que é sua “responsabilidade histórica” resolver o declínio demográfico russo até a metade da década e anunciou medidas contra a pobreza.

Numa sinalização importante, sugeriu que o país pode usar dinheiro de seu fundo soberano para estimular tais investimentos, uma política expansionista que ele vinha evitando até aqui. 

No campo externo, voltou a dizer que pela primeira vez na história a Rússia estava na vanguarda de uma corrida armamentista, no caso, com seu programa de mísseis hipersônicos.

“Nós não estamos atrás de ninguém. Ao contrário, outros Estados vão ter de criar armas que a Rússia já tem”, afirmou. Embora o valor estratégico de tais armas hoje seja quase nulo, elas são vistas como centrais no futuro da guerra, e os EUA anunciaram projeto para correr atrás do tempo perdido.

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