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Depoimento: Clóvis Rossi, o doce indignado

Como alguma coisa poderia entupir o coração enorme daquele sujeito enorme?

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São Paulo

O Rossi era um tipo puro. Foi tão estranho quanto preocupante ouvir que tivera “um pequeno infarto”, que foi como uns colegas soubemos da notícia, na calçada do jornal. Como alguma coisa poderia entupir o coração enorme daquele sujeito enorme? Infarto e Rossi são palavras que não parecem combinar. Rossi foi quase sempre um homem alegre.

Ainda assim, vivia indignado, todos os dias, várias vezes ao dia, com as misérias do Brasil. Talvez pouca gente se lembre disso porque Rossi estava sempre de bom humor, quase sempre sorrindo, com aquela alegria de viver quase infantil, o que ficava ainda mais simpático em um “senhor de idade” de quase dois metros de altura.

Jornalista Clóvis Rossi, decano da redação da Folha de S.Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

No entanto, na última conversa mais compridinha, também na calçada do jornal, faz umas três semanas, deu para notar que parte da alegria se fora. Pensando bem, era assim havia uns quatro ou talvez cinco anos. Rossi não ficava amargurado ou assim não costumava parecer desde que o conheci. Nos últimos tempos, porém, é como se as desgraças do país tivessem derrubado até seu espírito leve. Estava um pouco triste, como a gente fica com uma decepção final.

Rossi não tinha vaidade, não tinha luxos, não tinha frescura, era generoso. Era genuína e naturalmente avesso a esnobismos, “humilde”, como as pessoas dizem, por disposição fundamental de espírito. Pareceu um pouco mais feliz com prêmios apenas quando ganhou o Maria Moors Cabot, em 2001. Passou logo.

Gostava mesmo é da família, de viajar como repórter, de futebol e de cutucar pessoas com certezas. No jornal e por aí, fazia campanha para o país ser menos jeca, se informar sobre as mudanças do mundo, o que ouvi dele pelos 25 anos da nossa convivência.

Gostava também de polêmica, algumas encarniçadas, mas deve ser difícil encontrar alguém que imagine ter passado por um debate assim com o Rossi, que era doce mesmo na ironia. Tinha implicâncias de longo prazo, sim, algumas fundamentais. Por exemplo, tinha aversão ao “pensamento único liberal”, motivo de discussões quase diárias com os demais editorialistas, em especial com Celso Pinto, nos anos 1990, então colunista da Folha, outro grande jornalista, criador do “Valor”.

Em uma semana de 1997, países da Ásia começaram a quebrar em série. Era tempo de internet a lenha, havia poucos computadores conectados lá na sala dos editorialistas da Folha. Rossi ficava ligado no terminal “janela para o mundo”, baixando lentamente notícias da crise, escrevendo e-mails e ligando para fontes pelo planeta.

A certa altura do caos, virou pra mim e disse “e aí, Maçarico, quantos editoriais vamos fazer para o enterro dessa loucura neoliberal?”. Em seguida gritou “Celso, avisa teus amigos liberais aí que o mundo acabou” e saiu dançando e cantando pela sala algo que, mal me lembro, era uma versão de “Ciranda, Cirandinha” na melodia da “Marcha Fúnebre”, fazendo piada com o liberalismo, “rendia pouco e se acabou”, algo assim. O “neoliberalismo” e suas crises não acabaram, se tornaram norma (1998, 1999, 2001, 2007, 2008, 2012.

(Celso era antigo defensor de reformas liberais; Rossi me chamava por vezes de “Maçarico” por causa do temperamento crítico esquentado e vociferante.)

Como tanta gente da elite paulista, tinha simpatias pelos aspectos mais civilizados de PSDB e PT. Era próximo, velho conhecido ou amigo de muitos dos líderes desses partidos, a começar por FHC e Lula. A proximidade pessoal temperou de modo amargo decepções com tucanos e petistas no poder; na prática e sem alarde, rompeu com vários deles.

Rossi disfarçava, porque era Rossi, mas dava para perceber que a sua indignação, quase sempre alegre, pendia nos últimos tempos para um desencanto triste, que nunca foi o jeito dele. O Brasil conseguiu derrubar até o ânimo de Clóvis Rossi.

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