Darwin e Deus

Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas

Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Livro usa mito e memória para falar de elo entre homem e animais

'Os Grandes Carnívoros' deixa de lado antropocentrismo da literatura dita séria

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Confesso que tenho certa birra de décadas com a ficção dita "realista", ao menos se comparada com a paixão de uma vida inteira pela fantasia e pela ficção científica. Talvez o que me irrite mais em narrativas sobre pessoas comuns em situações estritamente normais, aquelas que costumam receber a classificação de "literatura séria" em detrimento de todas as outras, é a estreiteza antropocêntrica que farejo nelas – a impressão de que em tais textos, no fundo, os seres humanos são a única coisa do Cosmos que realmente importa.

É possível, porém, escrever essas histórias de um jeito fundamentalmente diferente e muito melhor, como comprova a pequena joia que é o romance "Os Grandes Carnívoros", da carioca Adriana Lisboa (editora Alfaguara, 176 págs.). Precisei de apenas três noites para concluir a leitura, e agora desejo que eu tivesse me demorado um pouco mais com as páginas entre os dedos. Só posso dizer que é um livro bonito e feroz como os bichos do título.

Tigre siberiano em parque do nordeste da China com uma floresta ao fundo, em cima de uma pedra
Tigre siberiano em parque do nordeste da China - Wang Jianwei/Xinhua

Quebrando a cabeça para tentar achar a melhor metáfora para descrever o romance, creio que ele poderia ser comparado a uma colcha de retalhos de memória pessoal e mito (embora seja difícil, por vezes, ter exata noção de onde um começa e o outro termina). Adelaide, a protagonista, tenta refazer a vida numa pequena cidade serrana depois de ter passado algum tempo presa, acusada de ecoterrorismo, nos EUA, além de ter de lidar com a deterioração progressiva da mente do pai, carcomida pela demência.

Objetivamente, acontece pouca coisa nas idas e vindas temporais da vida de Adelaide, mas cada pequeno fato adicionado ao quebra-cabeças da protagonista é como um pedaço de cristal multicor, refratando significância mítica (uma magia que, sem dúvida, brota da linguagem afiada, delicada e brutal da autora, em grande medida).

Questões fundamentais que deveriam estar na cabeça de todo mundo que tenta enxergar o mundo de agora e a condição humana – a natureza da violência, a nossa relação com outras formas de vida, como seria abraçar um tigre – aparecem a cada página. Como neste trecho:

"Um piscar de olhos. Ela pisa no jardinzinho atrás da casa do pai e da tia e é possível sentir a vida-morte-vida em tudo. Por dentro das árvores, debaixo da terra, nas folhas, nas pedras, os átomos alucinados, os pequenos pulmões dos pequenos animais, as antenas das formigas, os insetos que ela não enxerga, os mosquitos sedentos pela seu sangue, os olhos compostos das abelhas, os múltiplos corações das minhocas. As coisas fervilham. Por que diabos achamos que mandamos em tudo isso, ela pensa. Não mandamos nem nas batidas do nosso próprio coração."

Leiam.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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