Projeto leva feira de ciências para prisão

Iniciativa inédita em SP apresentou experimentos que envolvem vulcões, energia e matemática

São Paulo

​O dia 8 de outubro foi inusual para 40 presos que cumprem pena na penitenciária José Parada Neto, localizada em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. 

Ali, 2.662 presos disputam 1.135 vagas. Para entrar no local, é preciso passar por um aparelho de raio-X que escaneia o corpo inteiro e ter a intimidade exposta para o agente penitenciário.

Muitas portas de ferro adentro, que retiniam ao abrirem e ao serem novamente trancadas, estava em vigor, no lugar da disciplina esperada de quem cumpre sentença, o barulho de um rico festival escolar. As paredes das salas de aula exibem desenhos e obras feitas pelos alunos, com uma decoração temática da Copa do Mundo.  

Naquele dia os detentos tiveram pouco mais que duas horas para aproveitar as diversas atividades oferecidas, interativas em sua maioria, como quebra-cabeças (torre de Hanoi, tangram), jogos de lógica, uma espécie de Pac-Man sobre uma plataforma manipulável hidraulicamente com o uso de seringas e um dominó que força os competidores a fazerem contas de subtração —este último, sucesso de público.

O projeto Banca da Ciência, algo parecido com uma feira de ciências itinerante, estava pela primeira vez em uma prisão. André Luiz Alves, novo diretor unidade prisional, estava empolgado com a atividade inédita, ainda em andamento quando ele disse que o saldo era muito positivo.

A aluna de pedagogia da Unifesp Daniela Gomes da Silva e as colegas Elienai, Fernanda e Gabriela ficaram encarregadas de demonstrar o potencial da energia eólica para a turma que cursa o ensino médio ou que acabou de se formar na escola da penitenciária. Na maquete, um secador de cabelo acionava uma hélice, que, ao girar, convertia a energia de seu movimento em energia elétrica. 

“Percebemos que eles sabem muito mais que a gente, mesmo com relação ao experimento. Um dos presos trabalhou numa usina que fabricava um componente do gerador e nos deu uma aula. Outro contou como eles faziam para gerar energia elétrica a vapor, queimando bagaço de cana. Foi realmente uma troca de experiências”, diz Daniela.

Esse foi um dos experimentos favoritos de Rodrigo DBG, 39. Responsável pela biblioteca da escola e fã de ficção (Dan Brown e a série do “Código Da Vinci” estão entre os favoritos), ele já se formou no ensino médio e quer trabalhar como músico quando ganhar a liberdade. Depois, quem sabe, cursar direito “para ajudar a corrigir umas injustiças que a gente vê por aí”. 

“Quem conhece um pouco da nossa vida aqui, do nosso trabalho, vê que a gente não é tudo aquilo [de ruim]. Esse é um bom projeto [a Banca da Ciência], um grande passo [de reconhecimento]. O ideal é crescer, fazer mais vezes, para que vocês tenham um olhar diferente sobre a gente, não aquele de ‘tem que morrer, tem que matar’”, diz Rodrigo.

“Aqui a gente sente falta de coisas simples, como acordar e ver o sol… a gente aprende a valorizar as pessoas e a gente mesmo. Por mais doído que seja, é uma lição de vida esse tempo que estou passando aqui”, afirma o detento da José Parada Neto, unidade ligada à Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo destinada a abrigar presos por crimes sexuais.

Colega de Rodrigo na prisão, Charles Lima, 47, também esteve entre os selecionados para participar das atividades do dia. 

Evangélico, ele diz gostar do termo “reeducando”, empregado para mostrar que aqueles detentos estão sendo preparados para o retorno à vida em sociedade. 

Ele era um dos mais entusiasmados. “Amei o dominó de subtração. É muito legal aquilo ali, diferente. Gostei também do vulcão, a mistura do vinagre, detergente e bicarbonato”, conta. “Lá fora eu não gostava de escola, não. Ao estar recluso, sem a liberdade, o que fazer? Agora estou amando biologia, física...” 

Ele explica que a cada três dias estudados, desconta-se da pena, mas que muitos dos alunos ali estão realmente interessados no aprendizado.

“Quando cheguei aqui, só tinha a 5ª série. Hoje estou concluindo o ensino médio —estar aqui não é só perda, a gente acaba ganhando também. Agora a meta é conseguir um emprego, algo que a instituição também oferece. Lá fora muitos te olham como se você fosse um nada. Aqui a instituição aposta em você. Por que não aproveitar? Seria burrice.”

O discurso de Charles e de Rodrigo casam com mensagens que se leem nas paredes da escola do presídio, como “Trabalho e Educação” e “Inclusão e Reintegração”.

A intervenção científica na penitenciária José Parada Neto nasceu da colaboração de dois professores da Unifesp do campus Guarulhos, que concentra cursos de humanidades. Mariângela Graciano é especializada em EJA, educação de jovens e adultos, com foco no contexto prisional. 

A chave para a educação desse público, nessa faixa etária, diz a professora, é não infantilizá-los e criar um ambiente que permita que eles façam inferências por conta própria e que esteja relacionado à rotina.

Mas o “dono da banca” mesmo é seu colega de departamento Emerson Izidoro, que deu início ao projeto Banca da Ciência após concluir seu doutorado, em 2010. 

A ideia era levar ciência para a periferia. Em parceria com uma ONG que montava bibliotecas com estruturas de banca de jornal, nasceu a primeira Banca da Ciência, na USP Leste. Ali podia ser guardado o material usado nas demonstrações. Depois, foi montada uma segunda banca, no campus da Unifesp em Guarulhos. 

“Assim como a estrutura era simples, a ideia era ter equipamentos também simples, em vez de ser algo meio ‘caixa preta’, que a pessoa olha, acha bonito, mas não entende como funciona”, diz. 

O projeto conta com  alunos de graduação da USP, Unifesp e Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e uma das principais atividades é a produção de experimentos científicos didáticos, mas com uma peculiaridade: o foco não é a aula de ciências convencional, mas a educação não formal e a divulgação científica.

“A gente descobriu que não precisávamos mover toda a banca de ciência para levar a proposta dela para os diversos lugares”, conta Izidoro, responsável na Unifesp pela disciplina que trata do ensino de ciências naturais. 

Izidoro e equipe já carregaram os experimentos para lugares que vão de escolas infantis a estações de trem.

Para ele, é mito o paradigma que os alunos de EJA só querem ler e escrever. “Quando você pergunta, os interesses são muitos. Muitos querem saber por que existem estações do ano, como funciona um eclipse... E muitos já sabem essas e outras coisas —é importante valorizar isso.”

“Eu nunca tinha entrado numa penitenciária. Tinha curiosidade. É muito mais organizado do que eu imaginava. A gente fazia mil planos de como seria diferente, mas não foi. É como uma escola normal, só que mais organizada”, afirma. “Em poucos lugares funcionou tão bem.”

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