Descrição de chapéu The New York Times

Em carta, cientistas da China dizem que edição de genes de bebês é 'loucura'

Sem provas, chinês afirmou ter usado técnica Crispr para criar as primeiras crianças geneticamente editadas

Gina Kolata Sui-Lee Wee Pam Belluck
Xangai, China e Nova York | The New York Times e Reuters

Mais de cem cientistas, a maioria radicados na China, condenaram como "loucura" e como uma ação antiética o anúncio de um cientista de que teria alterado os genes de duas gêmeas nascidas este mês e criado os primeiros bebês com genes editados.

Em carta aberta que está circulando online, os cientistas disseram que o uso da tecnologia ​Crispr-Cas9 para editar genes de embriões humanos era arriscado, injustificado e prejudicava a reputação e o desenvolvimento da comunidade biomédica na China.

Em vídeos postados online, o cientista He Jiankui defendeu o que afirma ter realizado, acrescentando que realizou a edição de genes a fim de ajudar a proteger os bebês contra futura infecção por HIV, o vírus que causa a Aids.

 
Embriões modificados pela técnica Crispr
Embriões modificados pela técnica Crispr - Mark Schiefelbein/AP

"A ética biomédica para essa suposta pesquisa existe apenas no nome. Fazer pesquisas diretamente em humanos só pode ser caracterizado como loucura", diz a carta. "A caixa de Pandora foi aberta. Talvez ainda tenhamos um resto de esperança para fechá-la antes que seja tarde demais."

Yang Zhengang, professor da Universidade Fudan, disse à Reuters ter assinado a carta porque a edição de genes é muito perigosa.

A Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, da qual He é professor associado, disse que desconhecia o projeto de pesquisa, e que He está em licença não remunerada desde fevereiro.

A Comissão Nacional de Saúde da China anunciou na segunda-feira (26) que estava fortemente preocupada e que havia ordenado que as autoridades provinciais de saúde investigassem e esclarecessem o assunto imediatamente.

A comissão de ética médica da cidade de Shenzhen, no sul da China, e a comissão de saúde da província de Guangdong também estão realizando investigações, de acordo com o Southern Metropolis Daily, veículo estatal de mídia chinês.

A tecnologia Crispr-Cas9 permite que cientistas "recortem e colem" porções de DNA, e traz esperanças de soluções genéticas para doenças. Mas também existem preocupações de segurança e ética quanto ao seu uso.

Desde que cientistas criaram a poderosa técnica Crispr para edição de genes, eles vinham se preparando apreensivamente para o dia em que ela seria usada para criar um ser humano geneticamente alterado. Muitos países proibiram o trabalho nesse campo, temendo que o método viesse a ser usado para alterar todo tipo de traço genético, da cor dos olhos ao QI.

Agora, o momento que os cientistas temiam talvez tenha chegado. Na segunda-feira, um pesquisador chinês anunciou ter criado os primeiros bebês geneticamente editados na história, duas gêmeas nascidas este mês.

O pesquisador, He Jiankui, disse ter alterado um gene nos embriões, antes que eles fossem implantados no ventre da mãe, com o objetivo de tornar os bebês resistentes a infecção por HIV. Ele não publicou um estudo sobre sua pesquisa em qualquer revista acadêmica, e não ofereceu acesso a provas ou dados que confirmem definitivamente que fez o que está afirmando.

Mas seus trabalhos anteriores são conhecidos de muitos especialistas nesse campo, e eles afirmaram —com alarme— que é perfeitamente possível que He tenha de fato realizado o que afirma.

"É assustador", disse Alexander Marson, especialista em edição de genes na Universidade da Califórnia em San Francisco.

Embora os Estados Unidos e diversos outros países tenham tornado ilegal a alteração deliberada de genes de embriões humanos, não é ilegal fazê-lo na China, ainda que a prática seja reprovada por muitos cientistas naquele país.

Se embriões humanos puderem ser editados rotineiramente, muitos cientistas, especialistas em ética e autoridades temem o risco de um futuro no qual bebês passem por engenharia genética para receber determinados traços —como talento atlético ou capacidade intelectual— que nada teriam a ver com a prevenção de doenças devastadoras.

Embora esse tipo de possibilidade pareça estar no futuro distante, há uma outra preocupação imediata e urgente: a segurança. Os métodos usados para a edição de genes podem alterar outros genes inadvertidamente e de maneiras imprevisíveis. He disse que isso não aconteceu no caso em questão, mas a preocupação continua a existir quanto ao futuro das pesquisas nesse campo.

He fez seu anúncio na véspera da Segunda Conferência de Cúpula Internacional sobre Edição do Genoma Humano, em Kong Kong, dizendo ter recrutado diversos casais nos quais o homem era portador de HIV, e depois ter utilizado fertilização artificial para criar embriões humanos resistentes ao vírus que causa a Aids. Ele o fez usando o método Crispr-Cas9 a fim de deliberadamente desativar um gene, conhecido como CCR5, usado para produzir a proteína da qual o HIV precisa para entrar em células.

He disse que a experiência funcionou para um casal cujas filhas gêmeas nasceram em novembro. Ele disse que não houve efeitos adversos sobre outros genes.

Em vídeo postado por ele, He disse que o pai das gêmeas agora tem um motivo para viver, porque teve filhas, e que as pessoas portadoras do HIV sofrem séria discriminação na China.

O anúncio de He foi noticiado anteriormente pela MIT Technology Review e pela Associated Press.

Em entrevista à Associated Press, ele deu a entender que esperava estabelecer um exemplo, ao usar a edição de genes por motivos válidos. "Sinto a forte responsabilidade de não só chegar primeiro, mas também estabelecer um exemplo", ele disse à agência de notícias. "A sociedade decidirá o que fazer a seguir".

É altamente incomum que um cientista anuncie um desenvolvimento que pode ser revolucionário sem oferecer dados que possam ser revisados pelos seus colegas pesquisadores. He disse que foi autorizado a realizar o trabalho pela comissão de ética do hospital Shenzhen Harmonicare, mas o hospital negou estar envolvido, em entrevistas à mídia chinesa.

A universidade para qual o pesquisador trabalha, a Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, disse que ele está em licença não remunerada desde fevereiro, e que sua escola de biologia considerava o projeto dele como "séria violação da ética acadêmica e das normas acadêmicas", de acordo com a agência de notícias estatal chinesa Beijing News.

Muitos cientistas ficaram chocados, nos Estados Unidos.

"Creio que isso é completamente insano", disse Shoukhrat Mitalipov, diretor do Centro de Terapia Genética e Células Embrionárias na Universidade de Saúde e Ciência do Oregon. Mitalipov inovou o ramo no ano passado ao usar edição de genes para remover com sucesso uma mutação perigosa em embriões humanos, em condições de laboratório.

Mitalipov disse que, ao contrário do seu trabalho, que se concentra em editar genes para remover mutações que causam doenças sérias e que não podem ser prevenidas de outra maneira, o de He não faz coisa alguma de necessário em termos médicos. Há outras maneiras de prevenir infecções por HIV em recém-nascidos.

O pesquisador chinês disse que "o mundo avançou para o estágio de edição de genes de embriões".

Há três meses, no final de agosto, em uma conferência sobre engenharia de genes no Laboratório de Cold Spring Harbor, Nova York, He apresentou um trabalho sobre a edição do gene CCR5 em embriões de nove casais.

Na conferência, cujos organizadores incluíam Jennifer Doudna, uma das inventoras da tecnologia Crispr, He fez uma palestra cautelosa sobre algo que seus colegas consideraram como completamente enquadrado ao reino das pesquisas eticamente aprovadas, disse um dos participantes, Fyodor Urnov, diretor assistente do Instituto Altius de Ciências Biomédicas e pesquisador visitante no Instituto de Inovação Genômica da Universidade da Califórnia em Berkeley.

"Quem assistiu à palestra esteve diante de um avanço muito cauteloso, ponderado, passo a passo", disse Urnov. "Ele fez uma apresentação sobre a edição do CCR5. Estava falando para colegas, editores profissionais de genes que sabem que o campo está avançando rapidamente. Por isso, a atmosfera na sala, francamente, era, se não de tédio, pelo menos de algo como 'sim, você está usando os 10 últimos anos de avanços, já vimos'".

Mas He não mencionou que alguns dos embriões haviam sido implantados em uma mulher e poderiam resultar em bebês alterados por engenharia genética.

"Pelo que sabemos agora, na hora em que ele estava fazendo a palestra já havia uma mulher na China gestando gêmeas", disse Urnov. "Ele teve oportunidade de acrescentar que, 'nossa, esqueci de dizer antes mas, pessoal, uma das participantes está grávida de gêmeas".

"Não quero jogar pôquer com He", brincou Urnov.

Richard Hynes, pesquisador do câncer no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e copresidente de um comitê consultivo sobre edição de genes humanos na Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, disse que o seu comitê e uma organização semelhante no Reino Unido tentaram determinar que, caso genes humanos sejam editados, isso aconteça apenas para tratar de "necessidades não atendidas sérias no campo do tratamento médico, em procedimentos com monitoração forte, acompanhamento intensivo e pleno consentimento dos envolvidos".

Não está claro que alterar genes para que seus portadores resistam a infecção por HIV seja uma "necessidade não atendida séria". Homens portadores de HIV não podem infectar embriões. O sêmen do homem contém o vírus causador da Aids, que pode infectar mulheres, mas é possível lavar o espermatozoide para remover o vírus antes da inseminação. Ou um médico pode injetar um único espermatozoide no óvulo. Em qualquer dos casos, a mulher não é infectada, e tampouco quaisquer bebês.

He fez seu doutorado na Universidade Rice, em física, e pós-doutorado na Universidade Stanford, sob a orientação de Stephen Quake, professor de bioengenharia e física aplicada que trabalha com sequenciamento, e não edição, de DNA.

Especialistas disseram que usar o Crispr poderia ser muito fácil para um cientista como He.

Depois de retornar a Shenzhen em 2012, aos 28 anos, He criou a Direct Genomics, uma empresa de sequenciamento de DNA de cujo conselho consultivo Quake supostamente faria parte. Mas em entrevista telefônica, na segunda-feira, Quake disse que jamais esteve associado à empresa.

Tradução de Paulo Migliacci

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.