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genética

Premiada com Nobel, Crispr revoluciona pesquisa, mas está longe de alterar natureza humana

Comitê celebrou impacto de técnica de edição genética, mas foi cuidadoso em apontar seus limites

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São Carlos (SP)

A linguagem cuidadosa escolhida pelo comitê do Nobel para explicar por que conferiu o prêmio de Química de 2020 às criadoras da técnica Crispr/Cas9 ajuda a colocar os avanços trazidos pela descoberta na perspectiva correta.

Se, de um lado, o comitê diz que “essa tecnologia teve um impacto revolucionário nas ciências da vida”, sua análise das implicações práticas da Crispr é muito mais comedida: “está contribuindo para novas terapias contra o câncer” e “pode fazer com que o sonho de curar doenças herdadas se realize”. Convém colocar itálicos mentais nas palavras “contribuindo” e “pode”.

E mesmo o tal impacto revolucionário precisa ser compreendido em termos contextuais. Por ora, a justificada empolgação em torno da técnica tem a ver principalmente com o seu valor enquanto ferramenta científica.

O jeito mais simples de entender como trechos de DNA funcionam é “desligá-los” ou retirá-los do genoma e, depois disso, verificar quais os efeitos de sua ausência sobre células, tecidos ou o organismo como um todo. É como apertar um interruptor para tentar saber quais luzes da casa ele controla.

Antes da Crispr, esse processo era uma eterna dor de cabeça laboratorial. Agora, com a ajuda da tecnologia, “qualquer idiota consegue fazer isso”, como brinca Rudolf Jaenisch, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), um dos primeiros a aplicar a Crispr em camundongos.

De fato, a abordagem é muito mais precisa do que qualquer sistema anterior de edição do genoma. Mas precisão relativamente elevada não equivale a mágica. Mirar com exatidão no trecho de DNA que se deseja alterar é basicamente questão de escolher o “texto” certo das letras químicas que compõem o genoma.

O problema é que esse texto é escrito com apenas quatro letras (as célebres A, T, C e G), o que significa que há sempre o risco de atingir o alvo errado (uma região do DNA com texto parecido) e causar efeitos imprevistos sobre o organismo (por enquanto, nada catastrófico foi detectado, mas ainda é cedo para dizer se isso não vai mudar no futuro). Mesmo uma versão aperfeiçoada da Crispr, apelidada de “prime editing” e comparada ao recurso Localizar e Substituir dos programas de edição de texto dos computadores por causa de sua praticidade, só consegue alterar, no máximo, 35% das células nas quais é aplicada.

Apesar de todas essas limitações, faz bastante sentido a esperança de que a Crispr se torne uma arma contra as doenças herdadas que o comitê do Nobel mencionou. Existe uma imensa variedade de problemas de saúde de origem genética, muitas vezes causados pela alteração de um único trecho de DNA. Cada uma dessas doenças é bastante rara quando vista isoladamente; no entanto, quando somadas, acometem uma parcela significativa da população (entre 1% e 5% das pessoas mundo afora, dependendo da estimativa).

Em alguns casos, a Crispr poderia ajudar diretamente as pessoas que sofrem com esses problemas hoje; em outros, ela cria a possibilidade, mais controversa, de modificar óvulos e espermatozoides dos portadores de tais problemas para que eles não transmitam mais as versões defeituosas desses genes para as gerações seguintes.

O que não se deve esperar para tão cedo, e talvez por muito tempo, é que a Crispr ou suas sucessoras sejam capazes de interferir em características mais complexas com um suposto objetivo de “melhoramento” (seja lá o que isso for). Para modificar aparência física, habilidade atlética ou personalidade, por exemplo, seria preciso alterar centenas ou milhares de regiões do genoma ao mesmo tempo.

Isso, é claro, partindo do princípio de que sabemos com algum grau de precisão o efeito de cada um desses genes, o que ainda está longe de acontecer. Também não é brincadeira calcular o impacto da interação entre uma multidão de genes e as condições ambientais que influenciam o desenvolvimento humano. E há ainda o fato de que mesmo variantes genéticas supostamente “boas” costumam ter um custo biológico embutido: maior inteligência pode estar associada a risco mais elevado de certas doenças mentais, digamos. Onde deve estar o fiel da balança? Ninguém faz a menor ideia.

As incertezas são gigantes, mas é encorajador saber que Jennifer Doudna, uma das ganhadoras do Nobel, tem se preocupado em intervir no debate público sobre o tema, pedindo, por exemplo, uma moratória ao uso da Crispr em seres humanos, conforme relata em seu livro “A Crack in Creation” (“Uma Rachadura na Criação”, escrito com Samuel Sternberg).

Ela conta ter sonhado uma vez que Hitler (com um significativo focinho de porco na cara) a procurava para saber mais sobre sua pesquisa. Provavelmente existem limites fundamentais para o que é possível fazer com a edição de DNA, mas vale a pena estar atento aos pesadelos por trás das possibilidades, e não apenas aos sonhos.

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