Grécia antiga pagava mercenários para defendê-la em guerras

Estudo de DNA identificou que o exército heleno que participou da Batalha de Hímera, em 480 a.C., continha nascidos em outros países

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Franz Lidz
The New York Times

Onde quer que haja uma guerra num lugar distante haverá mercenários —combatentes contratados cujo único ponto em comum talvez seja a sede de aventura. Alguns entram para exércitos ou forças rebeldes de outros países porque acreditam na causa. Outros se alistam porque o pagamento é bom.

Era esse o caso na Grécia antiga, se bem que não poderíamos sabê-lo lendo os historiadores gregos antigos, para os quais a pólis —a cidade-estado grega independente— simbolizava o fim da opressão dos reis e a ascensão da igualdade e do orgulho cívico dos cidadãos. Nem Heródoto nem Diodoro Sículo, por exemplo, mencionaram mercenários em seus relatos sobre a primeira Batalha de Hímera, uma disputa ferrenha travada no ano 480 a.C. em que os gregos de várias cidades sicilianas se uniram para afastar uma invasão cartaginesa. Mercenários eram vistos como a antítese do herói homérico.

"Ser combatente assalariado carregava algumas conotações negativas: avareza, corrupção, lealdades inconstantes, a queda da sociedade civilizada", explicou a antropóloga Laurie Reitsema, da Universidade da Georgia. "Considerando a questão sob esse prisma, não surpreende que os autores da antiguidade optassem por reforçar o aspecto ‘gregos defendendo gregos’ das batalhas, em vez de admitir que tinham que pagar para ter defensores."

Imagem aérea de uma cova coletiva mostrando vários esqueletos humanos e um esqueleto de cavalo
Cova coletiva onde foram enterrados os soldados e também cavalos mortos na segunda Batalha de Hímera, na Sicília, em 409 a.C. - Stefano Vassallo via The New York Times

Mas uma pesquisa publicada na segunda-feira (3) no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences sugere que a ascendência das tropas que defenderam Hímera não foi tão exclusivamente grega quanto apareceu nos relatos históricos da época.

A vitória foi vista como um evento que definiu a identidade grega. Mas o novo estudo —uma análise de DNA degradado de 54 corpos encontrados na necrópole ocidental de Hímera, desenterrada recentemente— descobriu que as valas comuns estavam ocupadas em grande medida por soldados profissionais vindos de locais tão distantes quanto a Ucrânia, a região báltica (a Letônia atual) e a Trácia (que hoje é a Bulgária).

A descoberta reforça uma pesquisa publicada no ano passado em que Katherine Reinberger, bioantropóloga da Universidade da Georgia, e seus colegas fizeram uma análise química do esmalte dentário de 62 combatentes mortos e enterrados perto do campo de batalha de Hímera. Dois enfrentamentos grandes ocorreram no local: um em 480 a.C., quando as forças de Hímera derrotaram as do general cartaginense Amílcar Mago, e uma segunda batalha sete décadas mais tarde, quando o neto de Amílcar retornou em busca de vingança e Hímera foi destruída.

A equipe de Reinberger concluiu que mais ou menos um terço dos que combateram no primeiro conflito foram habitantes locais, contra três quartos na segunda batalha. Laurie Reitsema é a autora principal de ambos os estudos.

O historiador grego Angelos Chaniotis, do Instituto de Estudo Avançado, em Princeton, disse que o novo estudo lança uma luz nova sobre a composição das forças combatentes em Hímera, mesmo que não revele mais sobre os resultados das batalhas. "Ele confirma o quadro geral que tínhamos a partir das fontes antigas, ao mesmo tempo ressaltando o papel dos mercenários", ele disse. "Mercenários são mencionados em nossas evidências, mas em muitos casos estão escondidos em plena vista."

Ele [o estudo] confirma o quadro geral que tínhamos a partir das fontes antigas, ao mesmo tempo ressaltando o papel dos mercenários. Mercenários são mencionados em nossas evidências, mas em muitos casos estão escondidos em plena vista

Angelos Chaniotis

Historiador grego do Instituto de Estudo Avançado, em Princeton

David Reich, geneticista de Harvard cujo laboratório gerou os dados, observou que o artigo deles "sugere que os gregos minimizaram o papel desempenhado pelos mercenários, possivelmente porque quisessem projetar uma imagem de sua pátria ser defendida por heroicos exércitos gregos de cidadãos e dos lanceiros conhecidos como hoplitas, que usavam armadura." Presume-se que a presença de soldados de aluguel nos exércitos gregos prejudicaria essa imagem.

Os tiranos que governaram as cidades sicilianas gregas na era helênica recrutaram mercenários para expandir seus territórios e, em alguns casos, porque esses governantes eram extremamente rejeitados por seus cidadãos e precisavam de guarda-costas. "O recrutamento de mercenários chegou a incentivar a produção de moedas na Sicília com os quais pagá-los", disse Reitsema.

Rica em recursos e ocupando localização estratégica, a Sicília da antiguidade abrigava colônias gregas e cartaginesas, que durante muito tempo coexistiram pacificamente. Mas quando Terilo, tirano de Hímera, foi deposto por seu próprio povo, em 483 a.C., chamou seus aliados cartagineses para ajudá-lo a retomar a cidade.

Três anos mais tarde, o general cartaginês Amílcar Mago zarpou do norte da África para Hímera com uma força expedicionária estimada por Heródoto em mais de 300 mil homens (historiadores modernos estimam que fossem em volta de 20 mil). Mas soldados da cavalaria e infantaria de duas cidades-estado gregas sicilianas próximas, Siracusa e Agrigento, vieram auxiliar Hímera. As tropas de Amílcar foram expulsas, e seus navios foram incendiados. Quando tudo parecia estar perdido, o general teria se matado, pulando dentro de uma pira.

Em 409 a.C. o neto de Amílcar, Aníbal Mago, retornou para acertar as contas. Desta vez o exército grego era composto principalmente de cidadãos de Hímera, com poucos reforços. Os gregos foram derrotados e a cidade foi arrasada.

Imagem de cima mostra várias covas abertas em um campo de terra, com alguns cientistas escavando outras
Cientistas escavam as covas da necrópole na Sicília, onde foram enterrados os mortos na batalha de 2.500 anos atrás - Stefano Vassallo via The New York Times

Os túmulos e a necrópole ocidental de Hímera foram descobertos em 2009, durante a construção de uma ferrovia entre Palermo e Messina. Desde então já foram encontrados no sítio os resquícios de mais de 10 mil corpos sepultados. Para arqueólogos, um dos melhores indícios de um mercenário —estrangeiro ou não— é se ele foi sepultado numa vala comum.

"O mais provável era que as pessoas que limpavam o campo de batalha e enterravam os corpos não conheciam os mercenários", disse Reitsema. Por isso, mercenários teriam mais chances do que soldados cidadãos de acabar sepultados em valas comuns anônimas e tornar-se arqueologicamente invisíveis, ou menos visíveis, ela explicou.

Todos os restos mortais encontrados nas valas comuns em Hímera eram de homens adultos. Segundo Reitsema, para distinguir os combatentes das outras pessoas foi preciso encontrar "várias linhas de evidência". Sinais de traumatismo violento, como pontas de lança alojadas no corpo, indicam que um indivíduo morreu em combate. "Não encontramos armaduras ou armas, exceto pelas que estavam cravadas em ossos", disse Reitsema. "Esses objetos devem ter sido recuperados pelos sobreviventes no campo de batalha."

As datas das sepulturas, estimadas com base na estratigrafia e em alguns objetos espalhados, correspondem estreitamente com as datas das batalhas historicamente documentadas.

Determinar quais ossadas eram de himérios e quais eram de cartagineses foi uma questão de localização. Alissa Mittnik, geneticista de Harvard responsável pela análise genômica, disse que o fato de os mortos terem sido sepultados dentro da necrópole denota que eles faziam parte do exército de Hímera, não da força inimiga.

"Não sabemos nada sobre o modo como membros do exército cartaginês eram sepultados", ela disse, "mas nas guerras gregas, normalmente, o lado vitorioso deixava o inimigo ter acesso ao campo de batalha para retirar seus mortos."

Sabemos que muitos dos homens jovens nas valas comuns provavelmente cresceram fora da região mediterrânea. Eles podem ter ido à Sicília devido à promessa de cidadania ou de recompensas monetárias

Alissa Mittnik

Geneticista de Harvard

Isótopos químicos nos ossos dos mercenários indicaram que os soldados haviam nascido longe de Hímera e que seus pais e avós não eram imigrantes. E, disse Reich, os genomas antigos foram sequenciados e comparados com todos os genomas publicados. "Os novos genomas são mais próximos dos da Ucrânia e da Letônia."

Mittnick especulou que os soldados de aluguel podem ter chegado a Hímera com o exército comandado pelo tirano Gélon de Siracusa. Diodoro escreveu sobre 10 mil "colonos" estrangeiros que Gélon teria recompensado mais tarde dando-lhes cidadania. Mas suas origens geográficas são desconhecidas.

"Sabemos que muitos dos homens jovens nas valas comuns provavelmente cresceram fora da região mediterrânea. Eles podem ter ido à Sicília devido à promessa de cidadania ou de recompensas monetárias", disse Mittnick.

Além de destacar a origem genética díspar das tropas, a pesquisa mostrou que a ancestralidade genética determinou quais corpos foram enterrados em quais sepulturas. "O agrupamento intencional de estrangeiros lança luz sobre a lógica interna da construção da identidade dos colonos gregos", disse Reitsema.

Combatentes estrangeiros de origens diversas foram enterrados nas mesmas valas comuns. Eram suficientemente respeitados para serem sepultados na necrópole, mas ainda assim receberam tratamento diferente de muitas pessoas de origem grega. As valas comuns menores, nas quais os soldados provavelmente eram gregos, mostram sinais de cuidado maior no posicionamento dos corpos e dos objetos sepultados com eles, indicando que tinham prestígio maior e foram tratados com reverência maior que os forasteiros.

A antropóloga Britney Kyle, da University of Northern Colorado e uma das autoras do estudo, disse que a pesquisa demonstrou o poder e o potencial de novas técnicas de iluminar como foi a vida no passado.

"Muitos estudos de DNA antigo enfocam apenas os resultados genéticos, sem explorar plenamente o pano de fundo biocultural para contextualizar suas descobertas", ela disse. "Fizemos um esforço conjunto para reunir informações de relatos históricos, arqueologia, bioarqueologia e análises isotópicas para contextualizar os dados genéticos. É surpreendente o que podemos descobrir quando juntamos várias linhas de evidência."

De todas as surpresas que Kyle encontrou na investigação, a maior pode ter sido as distâncias percorridas por alguns dos mercenários para chegar à Sicília. "Pensamos na guerra como algo que causa ou aprofunda as divisões entre pessoas", ela disse. "Por isso mesmo, é fascinante pensar na guerra como algo capaz de aproximar pessoas."

Tradução de Clara Allain

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