Descrição de chapéu The New York Times

Homenagens a médicos nazistas, nomes de doenças geram debate sobre ética e medicina

Pesquisadores argumentam que a medicina deveria descartar os epônimos nazistas e conservar apenas as nomenclaturas ligadas a vítimas

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Rachel E. Gross
The New York Times

O filho de Edith Sheffer nunca gostou de rótulos, como síndrome de Asperger. Mas em 2016 um psiquiatra lhe disse que ele deveria se orgulhar: sua condição recebera o nome de Hans Asperger, cientista austríaco que nos anos 1930 utilizou sua posição para ajudar a salvar crianças como ele. Ao criar um diagnóstico que destacava a capacidade intelectual dessas crianças, disse o psiquiatra, Asperger tentou salvá-las da campanha nazista para "eutanasiar" crianças e adolescentes com deficiências cognitivas.

Sentada ao lado de seu filho de 12 anos, Sheffer sabia que isso não era inteiramente verdade. Hoje historiadora da Europa do século 20 na Universidade da Califórnia em Berkeley, ela passara anos pesquisando a síndrome de Asperger para escrever seu livro de 2018, "Asperger’s Children". Antes de ficar conhecido como salvador benévolo —"um Oskar Schindler da psiquiatria", segundo Sheffer—, Asperger seguiu fielmente a linha de ação médica dos nazistas.

Seu diagnóstico, que ele mais tarde denominou psicopatia autística, fazia parte do esforço médico nazista mais amplo de dividir as vidas em duas categorias: as que eram dignas ou indignas de viver. E, como Sheffer foi descobrir, chocada, Asperger havia pessoalmente condenado dezenas de crianças aos centros de extermínio. "Não quero que meu filho seja conhecido pelo nome de alguém que mandou crianças como ele para morrer", ela disse à Vox em 2018.

Pintura de um homem de óculos e terno
Os nazistas dividiam as vidas em duas categorias: as que eram dignas ou indignas de viver - Bri Hermanson/The New York Times

Quando o livro de Shaffer foi publicado, a síndrome de Asperger já deixara de constar do Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais. Em 2013, ela foi incluída nos transtornos do espectro autista, em parte porque não havia evidências sólidas de que merecesse ter seu diagnóstico próprio. Mas versões encurtadas do termo continuam a ser amplamente usadas na comunidade autista, e muitos membros se descrevem com termos como "Aspie", derivado do nome Asperger.

Desde então, Sheffer ficou satisfeita ao constatar que outras organizações médicas já deixaram em grande medida de usar o termo, incluindo a American Psychiatric Association e a OMS (Organização Mundial da Saúde), que lançou a 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças, ou CID-11. "Acho que a mensagem chegou à comunidade médica", ela disse.

A síndrome de Asperger é (ou era) um epônimo médico, parte da tradição de dar nomes de grandes figuras da medicina a partes do corpo, doenças, transtornos e ferramentas médicas. Seu desaparecimento ilustra o risco inerente incorrido quando se idolatra alguém de outra era e soma apoio a um movimento crescente para acabar com essa tradição por completo. Mas alguns estudiosos argumentam que mesmo epônimos "cancelados" têm um lugar, servindo para nos lembrar das violações éticas que a medicina nunca deve voltar a cometer.

Houve época em que um epônimo era visto como a mais alta honraria da medicina. Como os monumentos que homenageiam grandes generais, os epônimos homenageavam as cabeças mais brilhantes da medicina, assegurando que seus nomes continuassem vivos para a perpetuidade. O exemplo mais conhecido disso são as trompas de Falópio, cujo nome se deve a Gabriele Falloppio, padre e anatomista italiano que teria sido o primeiro a descrevê-las. Outros exemplos incluem as doenças de Alzheimer, Parkinson ou Hodgkin, todas com nomes de médicos europeus.

Assim, foi um choque quando, no início dos anos 2000, foi descoberto que dezenas de epônimos estavam ligados a médicos nacional-socialistas que haviam violado todos os valores do consentimento médico e da dignidade humana. Esses criminosos tinham seus nomes perpetuados nos pulmões, ligados a doenças comuns como a artrite e até a crateras da Lua. Parecia haver apenas uma reação possível: expurgar os nazistas. Mais que uma farsa, esses nomes eram uma afronta à profissão médica, escreveram dois médicos em 2007 no The Israel Medical Association Journal.

"Devemos isso a nossos pacientes, aos entes queridos deles, às vítimas dessas atrocidades", disse Eric Matteson, reumatologista aposentado que ajudou a renomear uma doença dos vasos sanguíneos inflamados conhecida anteriormente como granulomatose de Wegener.

A partir de 2000, depois de ouvir um rumor de que Friedrich Wegener teria tido vínculos com o nacional-socialismo, Matteson e um colega passaram anos vasculhando arquivos da Segunda Guerra Mundial pelo mundo afora. Acabaram descobrindo que Wegener foi um apoiador do nazismo que trabalhou a três quarteirões de distância do gueto de Lodz, na Polônia, e pode haver dissecado vítimas de experimentos médicos. Em 2011, várias grandes organizações médicas substituíram o nome "síndrome de Wegener" por granulomatose com poliangiite, reconhecidamente não tão fácil de lembrar (mas a "doença de Wegener" ainda pode ser encontrada na CID-11).

A caçada aos nomes nazistas tinha sido lançada. Descobriu-se que as células de Clara, um tipo de célula que reveste os pulmões e secreta muco, deviam seu nome a uma médica nazista que fez experimentos com prisioneiros que seriam executados pouco depois. As células foram rebatizadas de células claviformes, refletindo seu formato bulbáceo. A síndrome de Reiter, uma forma de artrite causada por uma infecção bacteriana, recebeu o nome de artrite reativa depois que se descobriu que seu nome anterior era homenagem a um médico que realizou experimentos mortíferos com tifo sobre prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald.

Na maioria dos casos, a mudança de nome acompanhou a preferência crescente por termos descritivos, em lugar de honoríficos. "Muitos de nós não utilizamos epônimos porque não são anatomicamente informativos", disse o anatomista Jason Organ, da Universidade de Indiana. Em vez de se falar em trompas de Falópio, ele disse, "faz muito mais sentido falar em tubas uterinas —isso descreve o que elas são". Em alguns casos, ele acrescentou, o uso incorreto de epônimos pode até levar a erros médicos.

Nem todos os anatomistas concordam com essa abordagem intransigente. Sabine Hildebrandt, educadora anatômica na Harvard Medical School, estudou na Alemanha alguns anos antes de o legado da medicina nazista começar a vir à tona. Para ela, os epônimos oferecem uma oportunidade de lembrar aos médicos futuros de um caminho que a medicina não deve trilhar nunca mais. "Eu gostaria de vê-los não necessariamente como homenagens, mas como marcadores históricos, que podem ser aproveitados para ensinar", ela disse.

Em sala de aula, Hildebrandt costuma destacar a síndrome de Frey, um dos raros epônimos médicos que celebra uma pesquisadora mulher e vítima do Holocausto. Condição neurológica que pode provocar forte transpiração facial quando a pessoa come, a síndrome recebeu o nome de Lucja Frey-Gottesman, neurologista polonesa que foi assassinada pelos nazistas depois de ser enviada ao gueto de Lviv.

Hildebrandt também chama a atenção para Charlotte Pommer, um nome que seus alunos provavelmente desconhecem. Em 1942, Pommer, jovem anatomista alemã, entrou no laboratório do diretor de seu departamento, dr. Hermann Stieve, e se deparou com os corpos executados de cinco pessoas que ela reconheceu, integrantes do grupo de resistência Rote Kapelle. Horrorizada, ela abandonou o campo da anatomia.

Muitos de nós não utilizamos epônimos porque não são anatomicamente informativos. Em vez de se falar em trompas de Falópio, faz muito mais sentido falar em tubas uterinas — isso descreve o que elas são

Jason Organ

anatomista da Universidade de Indiana

Pommer abriu mão de sua possibilidade de ser imortalizada. Nenhuma parte do corpo recebeu seu nome, e nenhum artigo científico a cita como autora. Stieve tornou-se renomado por suas contribuições para a medicina, incluindo a de ter contestado o chamado "método rítmico" de controle da natalidade e por ter estudado os efeitos do estresse sobre os ciclos menstruais de prisioneiras condenadas à morte. Já Pommer viveu na obscuridade, tratando vítimas da guerra em um hospital das proximidades.

Hildebrandt emprega essa história para mostrar que a cumplicidade não era a única opção disponível aos médicos daquela época e que existem outras maneiras de ser recordado do que ter seu nome dado a alguma coisa. Seu livro de 2016 "The Anatomy of Murder: Ethical Transgressions and Anatomical Science during the Third Reich" (A Anatomia do Homicídio: Transgressões Éticas e Ciência Anatômica no Terceiro Reich) é dedicado a Pommer. "É uma questão de corrigir a história", ela disse.

Vistos sob essa ótica, os epônimos poderiam ser comparados à tradição alemã moderna das Stolpersteine, ou "pedras de tropeçar" —placas de latão cravadas em ruas de paralelepípedos espalhadas pela Europa que lembram vítimas do Holocausto, contendo seus nomes e as datas em que foram sequestradas de suas casas. O objetivo é que essas placas façam os transeuntes pararem para olhar, levando-os a contemplar atrocidades passadas e refletir sobre as vidas daqueles que morreram.

Muitos estudiosos argumentam que a medicina deveria descartar os epônimos nazistas, mas conservar os que estão ligados a vítimas ou resistentes, para honrar suas histórias. Porém o lado "certo" da história não é fixo. À medida que as normas e os padrões mudam e que estudiosos como Sheffer e Matteson vão trazendo à tona novas evidências condenatórias, muitos outros certamente vão cair em desgraça.

"Se você puxar muitos dos fios soltos que estão lá fora, muita coisa vai se desfazer", disse Organ.

Sheffer destaca ainda outro problema dos epônimos: com frequência eles nem sequer honram a pessoa certa. O termo "síndrome de Asperger" emergiu nos anos 1980, atendendo a uma sugestão de uma psiquiatra britânica chamada Lorna Wing. Mas a própria Wing fez pesquisas muito mais extensas sobre a condição que ganharia o nome de Asperger. "Asperger não merece o crédito", disse Sheffer. "Se formos usar um epônimo, deveria ser ‘síndrome de Wing’, porque estamos seguindo a definição dada por ela, não a de Asperger."

Há também uma razão mais fundamental para nos livrarmos dos epônimos: destacar um indivíduo obscurece a realidade de que a medicina avança por meio de colaborações, debates e consensos graduais. Mas essa é uma lição que mesmo os médicos ainda estão aprendendo.

"Tentar conservar um epônimo e destituí-lo de seu significado honorífico é provavelmente muito, muito difícil", disse Jason Wasserman, especialista em bioética da Escola de Medicina da Universidade de Oakland que escreve sobre a ética médica na era nazista. "A glória da descoberta está embutida na cultura médica."

Tradução de Clara Allain

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