Mudar DNA de espécies se torna alternativa contra risco de extinção

Quando a conservação tradicional falha, a ciência está utilizando uma 'evolução assistida' para dar uma chance à vida selvagem vulnerável

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Emily Anthes
The New York Times

Por dezenas de milhões de anos, a Austrália tem sido um playground para a evolução, e o local reivindica algumas das criaturas mais notáveis da Terra.

É o berço dos pássaros canoros, a terra dos mamíferos que põem ovos e a capital mundial dos marsupiais que carregam bolsa, um grupo que engloba muito mais do que apenas coalas e cangurus. Quase metade das aves do continente e cerca de 90% de seus mamíferos, répteis e anfíbios não são encontrados em nenhum outro lugar do planeta.

A Austrália também se tornou um estudo de caso sobre o que acontece quando as pessoas levam a biodiversidade ao limite. A degradação do habitat, espécies invasoras, doenças infecciosas e mudanças climáticas puseram muitos animais nativos em perigo e deram ao país uma das piores taxas de perda de espécies do mundo.

Pássaro abre as asas
Pássaro Lichenostomus melanops cassidix em Yellingbo - Chang W. Lee/The New York Times

Em alguns casos, os cientistas dizem que a única maneira de proteger os animais é mudá-los. Usando uma variedade de técnicas, incluindo cruzamento e edição de genes, pesquisadores estão alterando os genomas de espécies vulneráveis, esperando equipá-las com as características necessárias para sobreviver.

"Estamos analisando como podemos auxiliar na evolução", disse Anthony Waddle, biólogo da conservação na Universidade Macquarie, em Sydney.

É um conceito audacioso, que desafia um impulso fundamental da conservação de preservar as criaturas selvagens como são. Mas nessa era dominada pelo ser humano —na qual a Austrália está na vanguarda de uma crise global de biodiversidade— o manual tradicional de conservação pode não ser mais suficiente, afirmam alguns cientistas.

"Estamos buscando soluções em um mundo alterado", disse Dan Harley, ecologista sênior da Zoos Victoria. "Precisamos correr riscos, ser mais ousados."

O Vórtice da Extinção

O Lichenostomus melanops cassidix é um pássaro que exige ser notado, com uma mancha de penas amarelas elétricas na testa e o hábito de grasnar alto enquanto voa pelas densas florestas de pântano do estado de Victoria. Mas, ao longo dos últimos séculos, os humanos e os incêndios danificaram ou destruíram essas florestas e até 1989 apenas 50 restavam, agarrados a uma pequena faixa de pântano na Reserva de Conservação da Natureza de Yellingbo.

Esforços de conservação local, incluindo um programa de reprodução em cativeiro no Santuário de Healesville, um parque da Zoos Victoria, ajudaram as aves a sobreviver. Mas havia pouca diversidade genética entre as aves restantes —um problema comum em populações de animais ameaçados— e a reprodução inevitavelmente significava endogamia. "Eles têm pouquíssimas opções para tomar boas decisões de acasalamento", disse Paul Sunnucks, geneticista da vida selvagem na Universidade Monash em Melbourne.

Em qualquer grupo de reprodução pequeno e fechado, mutações genéticas prejudiciais podem se acumular ao longo do tempo, prejudicando a saúde e o sucesso reprodutivo dos animais, e a endogamia agrava o problema. O Lichenostomus melanops cassidix era um caso extremo. As aves mais endogâmicas deixavam um décimo da prole das menos endogâmicas, e as fêmeas tinham uma expectativa de vida que era a metade, descobriram Sunnucks e seus colegas.

Sem algum tipo de intervenção, o Lichenostomus melanops cassidix poderia ser puxado para um "vórtice de extinção", disse Alexandra Pavlova, ecologista evolutiva da Monash. "Ficou claro que algo novo precisa ser feito."

Há uma década, Pavlova, Sunnucks e vários outros especialistas sugeriram uma intervenção conhecida como resgate genético, propondo adicionar alguns Lichenostomus melanops gippslandicus e seu DNA fresco ao grupo de reprodução.

Cruzar as duas subespécies poderia confundir o que tornava cada subespécie única e criar híbridos que não se adequassem bem a nenhum nicho. Mover animais entre populações também pode espalhar doenças, criar novas populações invasoras ou desestabilizar ecossistemas de maneiras imprevisíveis.

O resgate genético também é uma forma de intervenção humana ativa que viola o que alguns estudiosos se referem como o "ethos de restrição" da conservação e às vezes é criticado como uma forma de brincar de Deus.

"Havia muita angústia entre as agências governamentais em relação a isso", disse Andrew Weeks, geneticista ecológico da Universidade de Melbourne que iniciou um resgate genético do ameaçado Burramys parvus em 2010. "Foi realmente apenas a ideia de que a população estava prestes a entrar em extinção que, eu acho, deu um empurrão nas agências governamentais."

Sunnucks e seus colegas fizeram o mesmo cálculo, argumentando que os riscos associados ao resgate genético eram pequenos.

E assim, desde 2017, as aves de Gippsland fazem parte do programa de reprodução do Lichenostomus melanops cassidix no Santuário de Healesville. Em cativeiro, houve benefícios reais, com muitos pares mistos produzindo mais filhotes independentes por ninho do que pares compostos de dois Lichenostomus melanops cassidix. Dezenas dos pássaros híbridos foram liberados na natureza. Eles parecem estar se saindo bem, mas é cedo para dizer se têm alguma vantagem de aptidão.

Mirando Ameaças

Para o quoll-setentrional (Dasyurus hallucatus), um pequeno predador marsupial, a ameaça existencial chegou há quase um século, quando o invasivo e venenoso sapo-cururu (Rhinella marina) desembarcou no leste da Austrália. Desde então, os sapos tóxicos avançaram constantemente para o oeste —e dizimaram populações inteiras de quolls, que se alimentam dos anfíbios.

Mas algumas das populações sobreviventes de quolls no leste da Austrália parecem ter desenvolvido aversão aos sapos. Quando os cientistas cruzaram quolls avessos aos sapos com quolls ingênuos em relação aos sapos, a prole híbrida também torceu seus pequenos narizes rosados para os anfíbios tóxicos.

E se os cientistas transferissem alguns quolls avessos aos sapos para o oeste, permitindo que espalhassem seus genes discriminatórios antes da chegada dos sapos-cururus?

"Basicamente, você está usando a seleção natural e a evolução para alcançar seus objetivos, o que significa que o problema é resolvido de forma bastante completa e permanente", disse Ben Phillips, biólogo de populações da Universidade de Curtin em Perth que liderou a pesquisa.

Um teste de campo, no entanto, demonstrou quão imprevisível a natureza pode ser. Em 2017, Phillips e seus colegas liberaram uma população mista de quolls-setentrionais em uma pequena ilha infestada de sapos. Alguns quolls se cruzaram, e houve evidências preliminares de seleção natural para genes "inteligentes em relação aos sapos".

Porém a população ainda não estava totalmente adaptada aos sapos, e alguns quolls comeram os anfíbios e morreram, disse Phillips. Um grande incêndio também ocorreu na ilha. Depois, um ciclone atingiu.

"Todas essas coisas conspiraram para levar nossa população experimental à extinção", afirmou Phillips. Os cientistas não tinham financiamento suficiente para tentar novamente, mas "toda a ciência se alinhou", acrescentou.

Consequências não intencionais

Ainda assim, não importa quão sofisticada a tecnologia se torne, os organismos e ecossistemas permanecerão complexos. Intervenções genéticas "provavelmente terão alguns impactos não intencionais", disse Tiffany Kosch, geneticista de conservação da Universidade de Melbourne, que também espera criar sapos resistentes ao quitrídio. Uma variante genética que ajuda os sapos a sobreviver ao quitrídio pode torná-los mais suscetíveis a outro problema de saúde, disse ela.

Há muitas histórias de advertência, esforços para reengenhar a natureza que falharam espetacularmente. Os perigosos sapos-cururus, na verdade, foram soltos na Austrália deliberadamente, em uma tentativa profundamente equivocada de controlar besouros-praga.

Chris Lean, filósofo da biologia da Universidade Macquarie, disse acreditar no objetivo fundamental da conservação de "preservar o mundo como ele é por seu valor patrimonial, por sua capacidade de contar a história da vida na Terra". Ainda assim, ele disse apoiar o uso cauteloso e limitado de novas ferramentas genômicas, o que pode nos obrigar a reconsiderar alguns valores ambientais de longa data.

De certa forma, a evolução assistida é um argumento —ou, talvez, um reconhecimento— de que não há como voltar atrás, nenhum futuro em que os humanos não moldem profundamente as vidas e destinos das criaturas selvagens.

Para Harley, ficou claro que impedir mais extinções exigirá intervenção humana, inovação e esforço. "Vamos abraçar isso, não nos intimidar com isso", disse ele. "Minha visão é que daqui a 50 anos, biólogos e gestores de vida selvagem olharão para trás e dirão: 'Por que eles não deram os passos e as oportunidades quando tiveram a chance?'"

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