André Roncaglia

Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

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André Roncaglia

Adeus a Maria da Conceição Tavares

Seu legado nos desafia a buscarmos sempre fugir dos lugares-comuns.

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Maria da Conceição Tavares nos deixou no último sábado (8), aos 94 anos de idade. Pensadora original e professora admirada, Conceição respirava política e bravejava contra as injustiças sociais. Intelectual pública de língua afiada, fugiu da ditadura de Salazar, em Portugal, para cair nos porões da ditadura militar brasileira. Viu renascer a democracia formal, elegeu-se deputada federal e nos deixou a tarefa de construir a democracia multirracial brasileira, ainda tão distante.

Seu curso de economia política em 1992 se tornou referência popular na internet, pela erudição ácida e impactante de suas tiradas, as quais anteciparam em décadas a "lacração" das redes antissociais.

Conceição integrou os quadros do BNDE (1958-1960) e da Cepal (1961-1974) e foi fundadora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-graduação em Economia na Universidade de Campinas (1973), onde ajudou a formar o pensamento desenvolvimentista da "escola de Campinas".

A economista Maria Conceição Tavares, em entrevista à Folha em1994, na sede do jornal - Bel Pedrosa - 19.abr.94/Folhapress

Paulo Robilloti mapeou, com profundidade analítica e contextual, as contribuições de Conceição em "O desenvolvimento capitalista na obra de Maria da Conceição Tavares" (Unicamp 2016). Três momentos marcam seu pensamento: a fase cepalina (1963-1972), a fase do desenvolvimento capitalista no Brasil (1973-1985) e a fase da economia política internacional (1985-2024). Destaco duas de suas teses.

Em contraposição à tese de Celso Furtado, que previa estagnação econômica no regime militar devido à exclusão das massas do consumo —via arrocho salarial—, Tavares mostrou que a desigualdade de renda e de riqueza poderia produzir intenso dinamismo econômico. O consumo conspícuo da classe média emergente, anabolizado pelo crédito ao consumidor, sustentava os setores de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos. Escrito em parceria com José Serra, o artigo "Além da estagnação" (1972) se tornou um clássico da historiografia econômica brasileira.

Nos anos 1980, Conceição avança para economia política internacional, buscando compreender como os EUA reagiam à contestação de sua hegemonia tecnológica, militar e econômica.

O artigo "A retomada da hegemonia americana" (1985) mostra que, em vez de viver uma crise, a hegemonia dos EUA se reorganizava e se reafirmava com a "política do dólar forte", o "choque de juros" de Paul Volcker (presidente do Fed) em 1979, bem como a "diplomacia das armas", por meio do programa de governo conhecido como Guerra nas Estrelas. Devido à sua precisão e presciência, a tese obteve razoável consenso a partir dos anos 1990.

Maria da Conceição Tavares
A economista Maria da Conceição Tavares - Masao Goto Filho/Folhapress

Na revista "Cadernos do Desenvolvimento", do Centro Internacional Celso Furtado, Carla Curty (2023) sugere que o pioneirismo e a originalidade da análise de Conceição sobre as "relações de coerção e consenso entre os EUA e o resto do mundo" se devia à perspectiva latino-americana da autora sobre os eventos. Afinal, à época, a região estava imersa em uma significativa crise (da dívida externa), sentindo diretamente as ações e consequências dessa "retomada da hegemonia dos EUA" nos anos 1980.

Como lembrou Ricardo Bielschowsky, a "poderosa combinação entre criatividade e rebeldia" de Conceição obriga todo mundo a "pensar grande". Seu legado permanece vivo nas mentes de colegas e estudantes de economia, sempre nos desafiando a fugir dos lugares-comuns.

John Maynard Keynes disse, certa vez, que o mundo é governado por ideias de economistas defuntos de tempos atrás. Repetidos à exaustão, conceitos e teses se tornam familiares, a ponto da obviedade. Conceição logrou esse efeito em vida e, com sua passagem, ascende ao panteão de economistas mais influentes do Brasil.

À mestra, ficam nosso carinho e nossa admiração. Descanse em paz!

Ficha consular de Maria da Conceição Tavares, de 1952
Ficha consular de qualificação de Maria da Conceição Tavares, de 1952, pouco antes de ela vir ao Brasil - Reprodução/Arquivo Nacional

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