Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Horas vagas

Aos olhos do Grande Irmão, ver um filme, ler um livro ou ouvir música são meios, não fins

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O host do talk-show pergunta à entrevistada —não sei se é uma estrela de Hollywood, uma astrofísica da SpaceX, uma nutróloga influencer vendendo a mais moderna dieta ancestral— "o que você faz no seu tempo livre?". A moça encara o entrevistador com 1/3 de surpresa, 1/3 de sarcasmo, 1/3 de orgulho, vira pra câmera, repete "Tempo livre???!!!" e gargalha, no que é seguida pela plateia, numa catarse masoquista.

A cena nunca aconteceu. Foi algo que imaginei no meu tempo livre. Na verdade, não era um tempo liiiiivre, livre. Eu estava num show, que é uma forma de lazer autorizada por, digamos assim, nosso totalitarismo utilitarista.

Eventos culturais são vistos, no nosso mundo excelerado, como "formação continuada", "criação de repertório", "networking". Aos olhos do Grande Irmão (Caim S.A.), ver um filme, ler um livro ou ouvir música são meios, não fins —ou seriam, aí sim, o fim. Uma coisa é estar sexta à noite numa casa de shows, se nutrindo de música e poesia, que, espera-se, serão digeridas e transformadas em nutrientes pra segunda de manhã. Outra coisa é estar numa rede, tipo, terça à tarde, indo pra lá e pra cá, matutando: agora tô indo pra lá, agora tô vindo pra cá, agora lá, agora cá, agora... (Sou contra reticências, mas esta crônica é justamente sobre...).

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de S. Paulo no dia 16 de Junho de 2024, mostra o desenho de uma ampulheta na horizontal, de modo que a areia em seu interior não escorra entre os bulbos.
Adams Carvalho

Uma coisa é ver e ser visto na noite de São Paulo, numa casa de shows que "você precisa conhecer, nossa, tá todo mundo lá...". Outra coisa é estar sentado à mesa duas e trinta e sete da madrugada de quinta, encarando uma migalha de pão francês, pensando que, nossa, parece a Austrália e procurando migalhinhas que por ventura formem a Nova Zelândia e Papua-Nova Guiné. Às duas e trinta e nove você especula se umas gotas de vinho em torno da migalha não seriam, quem sabe, Tuvalu, Kiribati, Samoa e Tonga?

Li outro dia o texto de uma filósofa ou socióloga, não lembro bem, sugerindo que o totalitarismo, como modelo de estado, tinha sido derrotado no século 20. Não é mais imaginável um comunismo ou nazismo que invada nossas vidas como a água numa esponja. Que alívio, a gente pensa, enquanto se orgulha de dormir cinco horas por noite, de almoçar enquanto faz esteira, lê o jornal, cuida dos filhos e entrega currículo, hemograma completo, histórico do Google e antecedentes criminais nas mãos do Zuckerberg: "tempo livre?! Hahahaha!".

Por anos fiz um freela fixo pra revista de uma grande empresa global, cujo nome não importa. Eu entrevistava funcionários para uma seção intitulada "I have a life outside Grande Empresa Global". Fazia perfis de engenheiros, químicos, publicitários, gerentes de RH e outros profissionais que gostavam de pescar lula, de plantar rabanetes, de praticar tai chi, de sei lá o que, fora do trabalho. A intenção da empresa (boa, creio) era encorajar seus funcionários a redescobrir o mundo para fora daqueles muros. A não se transformarem em zumbis corporativos. Imagina uma escola que tivesse de estimular os alunos a aproveitar o recreio? Nem George Orwell em "1984" nem Pink Floyd em "The Wall" foram tão pessimistas.

O show em que eu estava (ao contrário da entrevista lá no começo, existiu de verdade) era um duo de voz e violão dos meus amigos e ídolos Ricardo Teperman e Vinicius Calderoni. No biz eles vieram com uma música que dizia (cito de memória) "Pra que cantar?/ Cantar pra que?/ Se quer saber/ Parou de escutar". Saquei o celular e anotei, embaixo da mesa, pra ninguém ver a luz: "crônica sobre horas vagas". Ei-la.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.