Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Família, soberania e máfia

Escritor narra encontros imaginários com brasileiros fora de si e do Brasil

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Da série “Encontros imaginários com brasileiros fora de si e do Brasil”:

“Pensa só no cara lendo o texto. Agora imagina a minha cara. Como se não bastasse eu ter imprimido a última versão, ainda fui obrigado a assistir à palhaçada. Anos de dedicação ao país, pra quê? Pra acabar imprimindo disparates e despendendo sorrisos diplomáticos enquanto a escória pontifica?

“Agora, quando passam por mim, os colegas das outras missões me dão os pêsames. Não duvido de que riam pelas costas da piada infame em que me converti, enquanto ele apresentava um novo país ao mundo. Shangrilá de grileiros, milicianos e impostores. Minha mulher me pergunta de onde saiu tanta gente escrota.

“O cara fala em nome dos índios que vai ludibriar; do meio ambiente que ele vai devastar; dos direitos humanos, da ciência e da liberdade de expressão que ele pretende abolir em nome de deus. Na maior cara de pau. Quer rifar a Amazônia? Apela pra soberania nacional. E o que é que digo pra minha mulher?

“Minha mulher já não pergunta qual o limite da minha subserviência, até quando vou fazer papel de capacho, me fingindo de cego ou idiota, lambendo botas, entre vênias e sorrisos diplomáticos.

“Depois de tanta canalhice, quem ainda compra a parolagem do combate à corrupção, pelo futuro do país?, ela pergunta. Tudo em nome da soberania e da família? Família no sentido mafioso, ela própria responde.

saviano de costas com vários guarda-costas
O jornalista italiano Roberto Saviano, jurado de morte pela máfia, escoltado por policiais - João Pina/Reprodução

“Fomos ver aquele filme em que o Brad Pitt faz um astronauta à procura do pai perdido no espaço e na saída ela tem uma iluminação. Desatou a falar sobre o pai que já não representa a lei mas uma ameaça à humanidade.

“É como se um ex-procurador geral da República revelasse que quase matou um ministro do STF pela honra da filha, ela disse, sarcástica. Tem um significado que ultrapassa o despreparo psicológico e a desqualificação profissional do indivíduo. Tem a ver com o estado de um país em que representantes da lei agem como adolescentes irresponsáveis no Face ou no Tuíter, pelos interesses pessoais mais embaraçosos e indefensáveis.

“E se ignoram os limites da lei, é porque não enxergam o outro, vivem no mundo da fantasia narcisista onipotente, ela continuou. Tanto faz se, abusando das prerrogativas do cargo e ignorando suas responsabilidades públicas, um presidente trabalha contra os direitos do cidadão, em nome dos negócios escusos da própria família, ou se um procurador conta com a mão de deus pra não matar um ministro pela honra da filha ou por motivos mais reles, como se autopromover pra vender livros. A diferença é que o presidente parece mais esperto que o procurador.

“Resolvi parar de contar a ela o que tenho ouvido nos bastidores. O que eles dizem em público já fede o suficiente. E minha mulher está a ponto de pegar em armas. Parei de lhe contar os bastidores, em nome da saúde e da segurança dela.

“Minha mulher tem uma teoria sobre a covardia humana, na qual agora também me inclui. Diz que ser cúmplice silencioso é compartilhar da canalhice generalizada. Eu argumento com a minha carreira, com o nosso futuro. Ela já não quer falar sobre esse assunto. Em resposta, segue me enviando emails com dados sobre o derretimento da calota polar, a elevação do nível dos oceanos, os agrotóxicos, as novas doenças e as espécies em extinção.

“Entre as teorias preferidas da minha mulher está a da boçalidade. Ela diz que, como a entropia, a teoria da boçalidade prevê um conjunto de fatores nos empurrando para um ponto sem volta. A boçalidade é só o acelerador. Boçalidade em combinação explosiva com a esperteza.

“Minha mulher diz que a idiotia catalisada pelas redes sociais confirma que os saltos tecnológicos na história da comunicação são gatilhos para a disseminação do melhor e do pior do ser humano.

“Diz que leu num artigo recente que, sem a imprensa, as ideias de Lutero nunca teriam o alcance que lhe permitiu fazer a Reforma, mas tampouco seus panfletos antissemitas, exortando os alemães a queimar sinagogas e escolas judaicas, teriam o mesmo papel na pavimentação rumo ao Holocausto.

“É aí que ela planeja agir. Não para de falar em cavalos de Troia, em usar as armas do inimigo. Estou preocupado com ela. Temo que esteja sob a influência de hackers ou de procuradores suicidas. E que se sirva do que lhe contei sobre os bastidores do poder para revelar ao mundo o que nos espera.

“Ela rebate, com um sorriso estranho, como se estivesse diante do último dos boçais, que não é preciso muita imaginação pra saber o que nos espera.”

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