Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Nada revela a tragédia humana com mais precisão do que a ausência do homem

Filme de Pierre Huyghe é perturbador pela possibilidade de ver a falta, empatia e horror confundidos

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As representações mais assustadoras do homem têm a marca da sua ausência. Nada revela a tragédia humana com mais precisão do que a falta de seu agente.

"Avant l’orage" (antes da tempestade), título da exposição coletiva que reúne uma série de obras mais ou menos apocalípticas (alusivas ao fim do mundo ou a um outro mundo), na Bourse de Commerce – Coleção Pinault, em Paris, dá a entender que o desastre ainda está por vir.

As imagens de "Untitled (Human Mask)" (sem título – máscara humana), de Pierre Huyghe, entretanto, fazem crer que o desastre já aconteceu e que sobrevivemos em meio aos escombros, porque seguimos vendo. É aí, nessa ilusão, que a tragédia se instala.

Cena do filme "Untitled (Human Mask)" de Pierre Huyghe - Divulgação

Huyghe tem dois filmes na exposição. Sua obra é feita de hibridismo, de seres mutantes, de identidades fluidas entre homens e animais, cultura e natureza. Têm a ver com o espírito do tempo, com a crítica ao antropocentrismo e ao chamado Antropoceno.

"Untitled (Human Mask)", porém, está dentro e fora do seu tempo, como toda obra de arte excepcional. O filme, de 2014, é um acontecimento raro, marco não apenas de uma nova compreensão crítica do lugar do homem no mundo, ecoando as ideias do momento, mas de um entendimento radical, insustentável e implosivo desse lugar.

Obras de arte excepcionais não se contentam em ecoar as ideias das quais nascem e nas quais bebem e em princípio prosperam. Não seguem apenas as tendências do seu tempo, não confirmam o que o mundo já entendeu (ou quer entender), mas inauguram novas possibilidades de pensamento e representação, muitas vezes incompreensíveis porque contraditórias e incompatíveis com o que se comunga.

"Untitled (Human Mask)" dura 19 minutos. Reproduzindo o ponto de vista subjetivo de um homem que chega a uma cidade devastada, a câmera se aproxima de um cenário pós-apocalíptico, com casas semidestruídas e máquinas abandonadas pelos cantos. Não há ninguém em lugar nenhum. Nem mesmo atrás da câmera. A cidade é uma zona de exclusão. O drone, que nós não vemos mas nos permite ver, é a materialização sinistra da falta.

Estamos em Fukushima depois do terremoto e do desastre nuclear. A cidade foi evacuada, o que torna tão mais misteriosa a permanência de um ser que corre de um lado para o outro dentro de um restaurante vazio, em movimentos frenéticos e repetitivos, como se continuasse a cumprir as tarefas para as quais foi treinado, entre a cozinha e as mesas agora sem clientes.

Num primeiro momento, tomamos esse ser por uma menina. É, na realidade, um macaco com máscara e peruca de mulher. Abandonado no restaurante, ele continua a fazer o que aprendeu. Imita os humanos. Serve mesas vazias como fazia com a casa cheia, num movimento automático e desesperado.

De vez em quando, talvez por cansaço, interrompe o ato inútil. E aí mantém-se imóvel, numa posição que a máscara antropomórfica ajuda a associar a um estado contemplativo de melancolia e incompreensão.

O clichê diz que os olhos são as janelas da alma. A câmera se aproxima dos rasgos que formam os olhos na máscara. Lá dentro, cintilando por trás do rosto fixo e inexpressivo de mulher, reconhecemos olhos demasiado "humanos" e acuados, que entretanto revelam a nossa cegueira, a dimensão do engodo do nosso reconhecimento, o que chamamos de empatia e que ainda assim nos permite seguir fazendo o que fazemos. "Reconhecemos" por causa da máscara humana. Reconhecer é uma projeção.

O homem é o que ele não pode ver. É o que lhe abre a via suicida. Se pudesse ver-se, parava. Por mais que se analise, por mais que se dobre sobre si mesmo, depara sempre com um ponto cego, que é ao mesmo tempo a possibilidade e o limite de sua autorreflexão. Precisa crer que faz o bem, precisa ter esperanças para continuar no caminho da morte. O que não vemos é o que nos permite seguir fazendo o que fazemos, porque é da nossa natureza.

O filme de Huyghe nos confronta com esse paradoxo. O que torna tudo tão perturbador é a possibilidade de ver a falta, numa mistura de reconhecimento e estranhamento, empatia e horror confundidos. Ao nos imitar, o macaco amestrado revela nosso desamparo cego reduzido a um gesto mecânico.

Não nos vemos porque somos os agentes. Mesmo não havendo um homem por trás da câmera, o drone é extensão e consequência de sua presença, é sua sombra, o fantasma da destruição da qual o macaco é vítima antes de mais nada. O drone é a permanência da ação humana depois do desaparecimento do homem. É sua marca, sua falta, a representação sinistra de sua ausência suicida perpetuando a morte.

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