Era preciso manter a calma, sobretudo a organização. Cada um ali tinha só um número afixado no peito, o que exigia todo um jeitinho na hora de puxar assunto e apurar informações junto à concorrência.
"Você não é a Marina? Vizinha de porta do Ricardo e da Carla?", sussurrou a mulher sorridente de número oito para a distraída de número 23. Sim, ela mesma. "Eu sou a Tati, amiga do trabalho." "Prazer."
Em situações como aquela, um leve sorriso amarelo ou um olhar desconfortável para o teto poderia arruinar a simpatia-ostentação. Tati, então, foi rápida. Puxou pelo braço um careca barrigudo, de número 204. "Esse aqui é o Rodolfo, meu marido. Toda quarta-feira ele joga tênis com o Ricardo."
O clima estava descambando para o "arrã, que ótimo", quando Marina comentou já ter esbarrado em Tati e Rodolfo no elevador, a caminho de alguma festinha. "Ah, com certeza. Até porque nós íamos a todas. Saudade das resenhas no Rick e na Carlinha." Com expressão épica de pesar, Rodolfo completou. "Ô. Quem viveu sabe. Fim de uma era!"
Num estalo, Marina reconheceu a tática dos adversários e partiu sem dó para o contra-ataque. A princípio fofa e compreensiva, dizendo que esse era o grande lance quando um casal se separa: a rotina dos amigos também muda. "Mas depois que se conquista a confiança de ambos, fica tudo bem." Ai, essa doeu."
Desculpe a curiosidade, mas você faz o quê?", espumou Tati. "Rego as plantas quando eles viajam." Aberta a vantagem, Rodolfo rebateu. "Curioso, eles sempre viajavam para nossa casa em Saquarema."
Nesse momento, acabou o fair play. Os três partiram para a grosseria gracinha. "O gato deles me adora." "Já emprestei dinheiro aos dois. A juros de poupança!" "Cedo minha vaga de garagem." "Eles racham nossa senha da Netflix!"
De repente, ouviu-se um grito. "Passemos ao lote 27!" Discreto, num canto, o item mais valioso da noite: João, amigo que não chama "terraço" de "rooftop" e que se amarra em glúten. "Também não mando mensagem de áudio", acrescentou, lendo um livro. "Quem dá mais?", martelou o leiloeiro, enquanto Ricardo e Carla se estapeavam e subiam plaquinhas.
"Ih, ferrou", comentou Tati. "Não tem para mais ninguém", lamentou Marina. Rodolfo apenas sorriu amarelo. A regra é clara: amigo que sobra a gente bota num saco e doa para o Exército da Salvação.
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