Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

A seleção brasileira dos patriotas

A conduta bovina e alucinada que pede golpe no quartel nunca foi pelo Brasil

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No gol, Augusto Aras, com a função de fazer cena para o juiz, esconder a bola e arquivá-la quando a torcida se distrai. Jogador essencial para desfutebolizar a partida e deixar o tempo passar. Teatraliza o antijogo, mas não trai o esquema tático.

Nas laterais, o patriota do caminhão, que agarra o adversário com vontade cívica; e o patriota da praça da Sé, capaz de detectar infiltrações furtivas de atacantes golpistas. Completa a defesa o general Heleno, encarregado de caçar detratores e vigiar maus brasileiros. Já não tem o mesmo vigor de antes.

Apoiadores de Jair Bolsonaro protestam em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo - Jardiel Carvalho-2.nov.22/Folhapress

Na armação, o general Ramos, arquiteto de jogadas secretas que levam ao gol sem ninguém ver, sob a complacência do tribunal superior; e o general Braga Netto, criador de remuneração duplicada para os colegas, que rompe o teto na maior desfaçatez magistocrática. São acompanhados por dois volantes de destruição, os generais Mourão e Pazuello. De pouco apreço pela vida, mandam adversários para o inferno. Heróis matam.

No ataque, Fábio Faria, conhecido pela fidelidade canina ao projeto patriótico e pelos latidos histriônicos. Mas não morde. Quando fareja risco de punição pelo delito, pede escusas. Pede também auditoria do VAR, das casas de aposta e das inserções de sua imagem na TV. Ao seu lado, Paulo Guedes, centroavante matemático, cuja planilha mental só opera na ordem dos trilhões, e Ricardo Salles, hábil em acabar com a grama e cavar buracos no campo.

O general Villas Bôas orienta jogadores do banco e mantém a Fifa sob a mira de seus tuítes. Marcelo Queiroga, massagista dado a gestos obscenos, e Damares Alves e Regina Duarte, na administração da psique da equipe, ajudam do banco. Bolsonaro permanece no vestiário em posição fetal. O empresário patriota patrocina a coisa toda.

Em junho de 2018, escalei a "seleção brasileira dos homens de bem" (time: juiz do auxílio-moradia, Jair Bolsonaro, Datena, Alexandre Frota, Oscar Maroni, Celso Russomanno, Fernando Holiday, Magno Malta, Silas Malafaia, Marco Feliciano e Marcelo Crivella). Os patriotas de 2022 deram ao país um time menos inocente, sem tanta arte e beleza, mas com demonstrada capacidade de execução.

"Homem de bem" e "patriota" são arquétipos retóricos da tradição autoritária brasileira, agora turbinada pela onda da violência bolsonarista.

Assim como o uso de "homem de bem" se descolou da tradição do "bom cidadão", que se caracterizava pela virtude cívica e apego ao bem público, mas não prerrogativa hierárquica, "patriota" virou título autodeclarado de superioridade moral que legitima a agressão do outro. Duas fraudes conceituais, duas perversões que falsificam a história do pensamento.

Ser patriota, em outra época, significou ato corajoso de tomada de posição crítica ao governo de turno, compromisso profundo de lealdade política a uma comunidade que não se confunde com a pessoa do governante. Envolvia risco de ser enforcado. Não tem afinidade com a conduta bovina, servil, alucinada, militarista, com traços fascistas, que o bolsonarismo gestou, financiou e ainda mantém nas ruas pedindo ajuda alienígena para um golpe.

Patriotismo é apenas mais um termo (ao lado de "liberdade", "soberania", "família" etc.) para resumir uma única ideia simples e bruta: a defesa de uma ordem pré-constitucional, com hierarquias sociais e econômicas imutáveis. Nessa ordem não há pactos de solidariedade e reciprocidade, laços comunitários que imponham limites. Não cabe diversidade, responsabilidade e controle. Minorias sabem seu lugar predefinido no esquema da dominação.

Essa fraude linguística, ferramenta eficaz de opressão política, infectou também nosso vocabulário jurídico e constitucional. As "quatro linhas", o "poder moderador", a "intervenção militar constitucional", agora convertida em "intervenção federal", são produtos dessa indústria dos porões. Não guardam nenhuma relação com o vocabulário jurídico comum, mas induzem o caos conceitual e a quebra de nossa capacidade comunicativa.

O patriotismo da submissão na porta do quartel nunca foi pelo Brasil.

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