Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Conto de Natal

A insignificância é propriedade incômoda de qualquer existência humana

V. vivia uma vida difícil, entre desemprego e bicos. As contas do fim do mês não fechavam; às vezes, era o aluguel que não dava, outra vez faltava o dinheiro da passagem para se deslocar e procurar trabalho.

Um dia, ele decidiu que continuaria tentando a vida em São Paulo, onde havia mais chance, enquanto a mulher e o filhinho iriam viver com a família dela, no Norte --na roça, em tese, não lhes faltaria o essencial.

V., sozinho, mandava o que podia para sustentar o filho e a mulher. Ele se queixava, sem ressentimento: dizia que era injusto ele ter nascido na dureza, mas talvez ele não tivesse se esforçado quanto poderia.

Por exemplo, não tinha terminado o fundamental, falava mal e escrevia pior. Mesmo assim, V. considerava que sua situação era um avanço, comparada à dos pais dele, e esperava que seus filhos também avançassem. Em política, era pragmático: votava para quem "mostrava serviço de verdade", abrindo um posto de saúde ou uma escola.

Ilustração de Marizs Dias Costa para Contardo Calligaris  27.dez.2018
Ilustração de Marizs Dias Costa para Contardo Calligaris 27.dez.2018 - Marizs Dias Costa

Poucos meses depois de a mulher voltar para o Norte, V. recebeu uma chamada do sogro: ela e o filho tinham sido atropelados, estavam no hospital --inconscientes, chamavam o nome dele.

O avião era proibitivo. O ônibus também, salvo o clandestino, que sempre quebra, mas dá para pagar. Mas depois? Como sobreviver lá? Como trazer mulher e filho de volta?

V. foi para o banco do qual era (ou se considerava) cliente há quase dez anos e pediu um empréstimo de R$ 2.000. O banco negou. V. soube assim que ele sempre tinha sido um cliente mais tolerado do que benquisto, e sua longa "fidelidade" ao banco não lhe valia nenhuma consideração especial. Alguém do banco, aliás, disse-lhe que não era por causa dos saldos negativos: se ele fosse um grande devedor, provavelmente conseguiria um empréstimo, mas ele era irremediavelmente "pequeno".

Nessa ocasião, V. descobriu não tanto sua pobreza (essa ele já conhecia), mas sua insignificância.

A insignificância é uma propriedade intrínseca, fundamental e incômoda de qualquer existência humana. E todos, ricos e pobres, batalham para evitar essa revelação.

Quando V. se deparou com sua insignificância, ele recorreu a artifícios aos quais muitos recorremos: ele se transformou, para negar, nem tanto sua miséria ou as supostas injustiças das quais ele poderia ter sido vítima, mas sua insignificância. Transformou-se como?

Ele se enveredou por dois caminhos, sucessivamente. Num primeiro momento, ele se dedicou a uma militância política revolucionária e arruaceira.

Algum tempo depois, deixou a militância e entrou, junto com a mulher, numa igreja evangélica, da qual se tornou fiel fervoroso, não sem alimentar o projeto, quem sabe, de se tornar pastor um dia.

Parecem caminhos opostos --ainda mais hoje, quando, na arena política, eles se encaram como inimigos: esquerda e direita, os bíblias contra os comunas. Mas, para V., eram remédios contra o mesmo mal.

Somos insignificantes? Duas soluções. A revolucionária diz que sairemos da insignificância porque passaremos a ser os grandes protagonistas de nossa história (aliás, da História, com H maiúsculo).

A solução divina diz que Alguém (com A maiúsculo) garantirá uma significação final e eterna para todos. No fundo, dá na mesma: deixaremos de ser insignificantes graças à Revolução ou graças a Deus.

Os dois caminhos também compartilham um mesmo ressentimento: a causa de nossa insignificância seria sempre o prazer que os outros conhecem --e a gente, não, claro.

Esse ressentimento se expressa numa constante valorização da renúncia e da frustração, como se esses fossem os únicos caminhos pelos quais seria possível dar sentido às nossas vidas.

O revolucionário deseja que todos tenham uma significação básica garantida, mas o ressentimento lhe sugere que, para isso, é preciso que todos gozem quanto menos possível. E as sociedades revolucionárias se tornam caretas e tristes.

O religioso deseja que todos tenham uma significação dentro do plano divino, mas o ressentimento o leva a pensar que Deus só se alegraria diante das renúncias que os homens se imporiam para ele. Conclusão, o religioso, para honrar a Deus, exige que suas impotências se tornem regras universais.

Parece que só saímos da insignificância à condição de adotar a frustração como se fosse uma escolha moral e um mérito. Bom, se seu Natal foi insignificante ou frustrante, tente se recuperar no Réveillon.
 

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