V. vivia uma vida difícil, entre desemprego e bicos. As contas do fim do mês não fechavam; às vezes, era o aluguel que não dava, outra vez faltava o dinheiro da passagem para se deslocar e procurar trabalho.
Um dia, ele decidiu que continuaria tentando a vida em São Paulo, onde havia mais chance, enquanto a mulher e o filhinho iriam viver com a família dela, no Norte --na roça, em tese, não lhes faltaria o essencial.
V., sozinho, mandava o que podia para sustentar o filho e a mulher. Ele se queixava, sem ressentimento: dizia que era injusto ele ter nascido na dureza, mas talvez ele não tivesse se esforçado quanto poderia.
Por exemplo, não tinha terminado o fundamental, falava mal e escrevia pior. Mesmo assim, V. considerava que sua situação era um avanço, comparada à dos pais dele, e esperava que seus filhos também avançassem. Em política, era pragmático: votava para quem "mostrava serviço de verdade", abrindo um posto de saúde ou uma escola.
Poucos meses depois de a mulher voltar para o Norte, V. recebeu uma chamada do sogro: ela e o filho tinham sido atropelados, estavam no hospital --inconscientes, chamavam o nome dele.
O avião era proibitivo. O ônibus também, salvo o clandestino, que sempre quebra, mas dá para pagar. Mas depois? Como sobreviver lá? Como trazer mulher e filho de volta?
V. foi para o banco do qual era (ou se considerava) cliente há quase dez anos e pediu um empréstimo de R$ 2.000. O banco negou. V. soube assim que ele sempre tinha sido um cliente mais tolerado do que benquisto, e sua longa "fidelidade" ao banco não lhe valia nenhuma consideração especial. Alguém do banco, aliás, disse-lhe que não era por causa dos saldos negativos: se ele fosse um grande devedor, provavelmente conseguiria um empréstimo, mas ele era irremediavelmente "pequeno".
Nessa ocasião, V. descobriu não tanto sua pobreza (essa ele já conhecia), mas sua insignificância.
A insignificância é uma propriedade intrínseca, fundamental e incômoda de qualquer existência humana. E todos, ricos e pobres, batalham para evitar essa revelação.
Quando V. se deparou com sua insignificância, ele recorreu a artifícios aos quais muitos recorremos: ele se transformou, para negar, nem tanto sua miséria ou as supostas injustiças das quais ele poderia ter sido vítima, mas sua insignificância. Transformou-se como?
Ele se enveredou por dois caminhos, sucessivamente. Num primeiro momento, ele se dedicou a uma militância política revolucionária e arruaceira.
Algum tempo depois, deixou a militância e entrou, junto com a mulher, numa igreja evangélica, da qual se tornou fiel fervoroso, não sem alimentar o projeto, quem sabe, de se tornar pastor um dia.
Parecem caminhos opostos --ainda mais hoje, quando, na arena política, eles se encaram como inimigos: esquerda e direita, os bíblias contra os comunas. Mas, para V., eram remédios contra o mesmo mal.
Somos insignificantes? Duas soluções. A revolucionária diz que sairemos da insignificância porque passaremos a ser os grandes protagonistas de nossa história (aliás, da História, com H maiúsculo).
A solução divina diz que Alguém (com A maiúsculo) garantirá uma significação final e eterna para todos. No fundo, dá na mesma: deixaremos de ser insignificantes graças à Revolução ou graças a Deus.
Os dois caminhos também compartilham um mesmo ressentimento: a causa de nossa insignificância seria sempre o prazer que os outros conhecem --e a gente, não, claro.
Esse ressentimento se expressa numa constante valorização da renúncia e da frustração, como se esses fossem os únicos caminhos pelos quais seria possível dar sentido às nossas vidas.
O revolucionário deseja que todos tenham uma significação básica garantida, mas o ressentimento lhe sugere que, para isso, é preciso que todos gozem quanto menos possível. E as sociedades revolucionárias se tornam caretas e tristes.
O religioso deseja que todos tenham uma significação dentro do plano divino, mas o ressentimento o leva a pensar que Deus só se alegraria diante das renúncias que os homens se imporiam para ele. Conclusão, o religioso, para honrar a Deus, exige que suas impotências se tornem regras universais.
Parece que só saímos da insignificância à condição de adotar a frustração como se fosse uma escolha moral e um mérito. Bom, se seu Natal foi insignificante ou frustrante, tente se recuperar no Réveillon.
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