Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu clima chuva

Brasil morre afogado numa mistura de incompetência e interesses

A melancolia do brasileiro talvez derive do fato de que procuramos algo distante do que entendemos querer

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Nestes últimos dias, chove muito em São Paulo. Cria-se uma rotina: a gente acorda com a sensação de algum raio de sol promissor; logo, depois do meio-dia, a temperatura desce e, de repente, surpreendentemente, um tiro de canhão seco no alto anuncia o começo das hostilidades. E vem uma chuva pesada, intensa, mas sem exageros, como para dar desde já a impressão de que aquilo não vai parar, veio para ficar, ninguém sabe até quando.

Na verdade, não é nada de mais: uma hora ou duas depois, já parou, mas me deixou um gosto de molhado além da conta —indigesto por isso, por ser molhado além da conta.

Isso talvez se aplique tanto à aparência quanto ao gosto: um molhado-podre. De repente, a chuva de São Paulo parece encarnar um sentimento velho, ele mesmo já mofado.

Sei, não é nada, só a sensação de uma continuidade um pouco enjoativa que não conseguimos quebrar. Um ano, dois anos, três anos e o Brasil morre afogado numa mistura de incompetência e interesses (explícitos e escusos). É preciso ter uma confiança infinita no Brasil, na sua capacidade de encarnar um futuro que não chega, para não soltar a mão do balão nem as amarras que prendem os navios.

Mas talvez não. Talvez essa capacidade de nos enganar seja o charme último, o engano supremo. Talvez a facilidade com que o Brasil nos prende e nos engana seja mesmo o seu charme definitivo —o que esperamos dele: me engana, que eu gosto.

O que esperavam os bandeirantes paulistas do século 16, quando quem sabe parassem para deixar passar as chuvas de um verão parecido com este nosso janeiro? Passei um tempo contemplando suas feições e expressões, como se elas pudessem nos revelar atrás do que eles corriam. E, claro, não sei. Nem sei se eles sabiam.

Acho que eles faziam parte dos expansionistas, ou seja, só queriam a enigmática abertura de um mundo, ou então, a (também enigmática) presença repentina de seus limites.

Chamo de expansionistas todos aqueles que saíram à caça de um limite, que sempre é o limite possível do próprio desejo da gente. Por que Ulisses voltou para o mar, junto com um pequeno grupo de amigos pelos quais não foi abandonado? Por que, e a procura de quê, os viquingues navegaram pelo Oriente (outra gente, outra riqueza —sobretudo "outro” em que sentido)? Por que as caravelas ibéricas? Por que as bandeiras? E por que os conquistadores?

Das dezenas de respostas plausíveis, uma sempre volta como a mais plausível: para procurar e encontrar os limites dos próprios desejos da gente.

Talvez seja esse o caráter inevitavelmente melancólico do desejo do explorador, do conquistador e do bandeirante. São desejos que parecem procurar sua própria abolição.

Não é o caso de todos os desejos? Não exatamente. Em geral, o desejo não corre atrás dos objetos que o realizam e, por isso mesmo, o abolem —assim como a comida ou a bebida aboliriam a fome ou a sede.

O desejo, em geral, corre atrás de algo que tem uma natureza rebelde. Por exemplo, corro atrás de riquezas, para encontrar e ganhar reconhecimento. Claro, as riquezas em algum momento me prometem e garantem o reconhecimento que eu quero, mas não se confundem com ele.

Quando o desejo começa a frequentar seus limites efetivos, ou seja, quando sonha com uma forma de realização que ameaça aboli-lo (ou abolir a falta que o justifica), ele se torna propriamente triste, melancólico. É um paradoxo, mas, de fato, o desejo que se mantém é aquele que procura "outra coisa" —ou seja, algo além da falta que o justifica como desejo.

Como entender? Deveríamos querer ser bandeirantes à procura de algo que não é bem a coisa que nos faz falta e que nos chama? Sim, sei, parece bizarro, mas é mais ou menos isso.

A melancolia do bandeirante, do conquistador e talvez do brasileiro deriva disto: do conselho (implícito) de procurar algo distante do que entendemos querer.

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