Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

O coquetel que zombava da Lei Seca

Entrava para o clube quem encarasse as poções feitas com gim de banheira ou uísque de estábulo

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Com seu mais de 1,80m, cara de buldogue e severidade cristã, ela irrompia nos bares e botava todos para correr. As taças e garrafas explodiam sob as pedras que atirava. Depois vinham os móveis. Guiada pela mão de Jesus, que um dia lhe apareceu e deu-lhe essa missão, destruía mesas, cadeiras e janelas com os tacos de sinuca largados na pressa.

Carrie Nation foi a face justiceira daqueles que defendiam uma Nação Abstêmia no começo do século 20 nos EUA. Joana D’Arc com o charme de um trator, seus propósitos iam do moralismo ao feminismo. Os inimigos, bêbados pagãos, se entrincheiravam nos saloons, pubs e tavernas. Antes de arrasar tais antros, ela avisava em altos brados que iria purgar aqueles que ali estavam de seus hábitos maléficos.

O aviso soava como um alarme do apocalipse —principalmente depois que Nation passou a usar uma machadinha. Ela feria barris e balcões com a fúria da convicção. O uísque jorrava aos borbotões e encharcava as tábuas do chão. Tombado, o prazer era pisoteado pela virtude, que saía esfregando as mãos.

Morreu antes de ver a Lei Seca tomar conta dos EUA, em 1920.

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Oficiais da Proibição com barris de uísque, em Nova York, em 1923 - Biblioteca do Congresso dos EUA

Se a cruzada de Nation tinha um lado progressista, antipatriarcal, de luta contra a violência doméstica, foi durante a Era da Proibição que as mulheres ganharam espaço nos bares, antes dominado pelos homens. A clandestinidade via com bons olhos o aumento da clientela. Ademais, a festa ficava completa. Em grandes cidades, como San Francisco e Nova York, para cada saloon fechado, abriam-se ao menos três speakeasies.

Não à toa os anos 1920 são chamados de loucos ou esfuziantes. O pecado morava ao lado, em alto estilo. O ingrediente especial era burlar a lei. Quem encarasse com humor as poções feitas com gim de banheira ou uísque de estábulo logo entrava para o clube dos descolados, que só crescia, com padroeiros como Scott Fitzgerald e Dorothy Parker.

Talvez não se bebesse tanto nessa época como diz a lenda e quer o senso subversivo, mas certamente se bebia mais destilados —o vinho e a cerveja, mais fracos, eram mais difíceis de fazer. Além disso, médicos receitavam uísque para todos os males, de unha encravada a pneumonia e farmácias vendiam frascos de fortes poções como se fossem loção capilar ou xarope.

Muitos coquetéis nasceram nessa balbúrdia. Nem todos bons, pois, na ânsia de mascarar a má qualidade dos destilados caseiros, misturava-se tudo o que estivesse à mão.

Alguns dos melhores coquetéis dessa época eram de fora dos EUA, com a debandada de grandes bartenders locais para Londres, Paris e Havana, cidades onde o prazer de beber não ficava na moita e não havia guerra de gângsteres e políticos abusando da corrupção para fazer vista grossa.

Entre esses está o scofflaw, cujo nome ("zombar da lei") remete à votação proposta pelo The Boston Herald para eleger uma palavra que definisse aquela/e que bebesse ilegalmente. Ganhou essa, que dois meses depois batizou seu próprio coquetel, em um dos grandes bares de Paris, o Harry’s ou o Maxim’s —a disputa ficou em aberto.

É um drinque perfeito para celebrar este dia 22. Há 91 anos, o presidente Roosevelt assinou a lei que acabava com a Proibição. Por ironia, esse também é o Dia Internacional da Água. Cuide bem de seu chopp e seu scofflaw.


SCOFFLAW

45 ml de rye (ou bourbon)

30 ml de vermute seco

15 ml de suco de limão siciliano

15 ml de grenadine

Bata os ingredientes com gelo e coe para uma taça martini gelada. Como guarnição, use um twist de limão siciliano.

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