Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Pinga, Pereio e a sublime arte da cara de pau

Parece que dá uma piscadela ao espectador, compenetrado na suposta profundidade do dito

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Há ironias que pavimentam o futuro. Dono de uma das vozes mais marcantes do cinema, Paulo César Pereio não fala em seu primeiro filme, "Os Fuzis", de 1964. Foi dublado por Cecil Thiré, então assistente do diretor Ruy Guerra. O episódio teria sido fruto de uma desavença. Pura birra. Há momentos em que é melhor calar.

Assim mesmo, ele "fala". Numa cena, rodada num bar no sertão paupérrimo, Pedro, seu personagem, soldado a serviço do grande comércio, dá uma aula sobre as peças que compõem o fuzil, as quais vai desmontando e exibindo, uma a uma. É o striptease do símbolo fálico.

Paulo César Pereio em 'Os Fuzis', de Ruy Guerra
Paulo César Pereio em 'Os Fuzis', de Ruy Guerra - Divulgação

Divertindo-se com a ignorância dos camponeses, mais afeitos a enxadas e facões, pede ao dono do armazém uma energética para botar fogo na demonstração. Então enche vários copos com a pinga e promete a bebida a quem acertar o nome das peças que acabara de mostrar. "Fineza não cuspir no salão", diz o cartaz.

Alguns acertam e matam a sede. Impassível, ele vai virando os copos restantes, até a chegada de um forasteiro. O ambiente ganha ares de bangue-bangue à Cinema Novo, com muitos sorrisos mexicanos, cheios de dentes e malícia.

Em "Vai Trabalhar, Vagabundo!" (1973), do chapa Hugo Carvana, ele interpreta Ruço, um ás do taco no pano verde que endoidece ao perder a amada para seu maior rival, o estiloso Babalu. Dino (Carvana) vai ao hospício na tentativa de fazer com que ele volte aos (velhos) sentidos. Para isso, oferece-lhe uma cachaça. Ruço cheira a garrafa e sentencia: "É do norte. E é suave".

Pereio, nascido na alagada Alegrete (RS), é mestre nesses momentos, em que profere uma frase, entre tola e sábia, com convicção —e um toque de deboche. Algo que aperfeiçoou com o amigo Nelson Rodrigues. Parece que dá uma piscadela ao espectador, mesmo que seu rosto esteja imóvel, compenetrado na suposta profundidade do dito. É a sublime arte da cara de pau.

Boia salva-vidas, a pinga liberta e fortalece, acaba com a pasmaceira induzida pelos remédios, tal como a poção mágica de Panoramix e o espinafre de Popeye. Vários loucos fogem atrás da garrafa de Hamelin. Na casa da namorada de Dino, Ruço improvisa um alambique. Encarnando um alquimista alucinado, vai colocando ingredientes na fumaça gelada: molho inglês, groselha, álcool Zulu —não sem antes dar um gole. Um bombeirinho avant la lettre.

Como Patrício, irmão do fatalista Herculano em "Toda Nudez Será Castigada" (1973), de Arnaldo Jabor, é ele o arauto da liberdade. Para arrancar o viúvo de uma fossa suicida, empurra-lhe uma garrafa de uísque e uma foto. "Tu toma teu porre e dá uma espiadinha. Só uma espiadinha". A química é devastadora. Também pudera, quem está no acetato é Geni, rainha de um "rendez-vous de gabarito", interpretada gloriosamente por Darlene Glória.

Difícil encontrar personagem de Pereio que não beba. Do caminhoneiro Tião em "Iracema - uma Transa Amazônica" (1976) a Paulo, o industrial falido de "Eu te Amo"(1981), a garrafa é coadjuvante constante. E o desbunde, o sexo. Não sem uma certa perplexidade diante da existência.

Em "A Lira do Delírio"(1978), de Walter Lima Jr., ele faz o repórter policial Pereio. Logo no início, dispara uma ode à farra sem amanhã. Serve de brinde: "A vida dura só um dia, um porre, um gesto, um gemido, um canto, um pulo. Ou pouco mais que isso".


BOMBEIRINHO DO PEREIO

30 ml de cachaça

10 ml de groselha

10 ml de suco de limão

Uma gota de molho inglês

Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo martelinho (o copinho de shot).

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