Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Estados Unidos

Pedrinho gritou 'lobo'!

O analista concentra-se nas nuances; o pregador, na caricatura que lhe serve

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"Não rir, nem lamentar, nem odiar, mas compreender". A prescrição de Spinoza, que serviu como guia para os intelectuais públicos, saiu da moda. Na era das redes sociais, os intelectuais públicos desistiram de decifrar os fenômenos políticos, dedicando-se à tarefa banal de exprimir indignação moral perante suas bolhas ideológicas. De analistas, tornaram-se pregadores. Daí, o pequeno escândalo provocado por meus comentários, aqui e na GloboNews, sobre a ascensão da Reunião Nacional (RN) francesa.

Num passado menos envenenado, rótulos políticos serviam para descrever fenômenos dinâmicos. A atual RN, de Le Pen, emanou de um longo processo de revisões históricas e dramáticas cisões internas que ainda não se concluiu. Nessa trajetória, renunciou às suas raízes, fincadas na França de Vichy, para aderir à narrativa gaullista da França da Resistência. A estratégia permitiu-lhe capturar a maior parte do eleitorado da centro-direita tradicional, relegando o velho partido gaullista a um gueto. A extrema direita tornou-se direita nacionalista.

Marine Le Pen, mulher de cabelos loiros, está sendo entrevistada ao ar livre por um grupo de jornalistas. Ela está de perfil, vestindo um casaco bege. Os jornalistas estão segurando câmeras e microfones, e há um microfone boom visível acima da mulher. Ao fundo, há uma casa de tijolos e algumas árvores.
Marine Le Pen, líder da Reunião Nacional, conversa com jornalistas no norte da França - Sarah Meyssonnier - 14.jun.24/Reuters

A direita nacionalista é reacionária, xenófoba e islamofóbica, como a extrema direita, mas subordina-se às instituições democráticas. A RN só desistiu do chamado à deportação em massa de imigrantes para concentrar-se no objetivo principal: cancelar o princípio do "direito do solo", instituído pela Revolução Francesa, substituindo-o pelo "direito do sangue". Não é pouco: o "direito do solo" funciona como limitação constitucional das erupções de xenofobia e racismo.

Os pregadores, que preferem rir, lamentar e odiar, nem tentam explicar a mutação da RN. No lugar disso, apelam ao pensamento mágico, alegando que tudo não passa de uma operação de camuflagem. Seria, igualmente, mera camuflagem a mutação histórica do PT, de partido anticapitalista que rejeitou assinar a Constituição de 1988 para o atual partido de esquerda engajado na busca da governabilidade?

O PT chegou ao Planalto porque mudou. A RN atingiu o umbral do poder pelo mesmo motivo, o que a torna mais –não menos!– perigosa para os direitos humanos e a coesão social da França. A ascensão do partido de Marine Le Pen ameaça consumir a "França de 1789" na fogueira da "França eterna". Já o partido original, extremista, de Jean-Marie Le Pen, produzia apenas ruídos, por vezes sonoros, nas franjas da sociedade francesa.

Não é prudente traçar paralelos superficiais entre a Europa e os EUA –ou o Brasil. O Maga, movimento de Trump que tomou de assalto o Partido Republicano, é um fenômeno extremista, como atesta a contestação violenta à eleição de 2020. O bolsonarismo pertence à extrema direita, como prova a trama golpista que se desenrolou entre dezembro de 2022 e o 8/1 de Brasília. Na Europa, porém, os partidos da direita extremista, como a Afd alemã ou o Vox espanhol, permanecem circunscritos à periferia política. O perigo iminente mora nos partidos que moveram-se para a direita nacionalista, como o Fidesz, de Orbán, o Irmãos da Itália, de Meloni, e a RN francesa.

O analista concentra-se nas mutações e nas nuances; o pregador, na caricatura bruta que serve à sua causa. Os arautos do bolsonarismo só sabem utilizar os rótulos comunista e socialista (ou o que, na sua febre infantil, imaginam serem variações, como "liberais globalistas"). Já os intelectuais de esquerda, também prisioneiros do teatro das redes antissociais, reconhecem apenas neonazismo e fascismo (ou extrema direita, que tratam como sinônimo dos anteriores). Uns e outros comportam-se como influencers, investindo no mercado da propaganda.

O jovem pastor Pedro, conta-nos Esopo, acostumou-se a fazer troça com os habitantes da aldeia, gritando "lobo!" para atrair a ajuda deles. No dia em que o lobo emergiu da floresta, ninguém deu-lhe atenção – e lá se foi seu rebanho. Pedrinho, pare de representar.

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