Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
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Uma espiada na máquina da vida

Senti as polias girando no meio dos meus ossos, a máquina alavancando a vida

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Quem nunca deu uma espiada na máquina da vida? Há quem faça isso com frequência, outros raramente, mas não há quem nunca tenha divisado, por trás da persiana da rotina, as engrenagens enigmáticas que regem o nada banal exercício de estar vivo.

É comum espiá-la nos momentos solenes. Durante o enterro de uma pessoa que eu amava, em meio às lágrimas que não paravam de descer, de repente, a visão cortante: o morto não era mais o morto, eu não era mais a sua neta, ao meu lado não eram mais os meus primos, nem os meus tios. Éramos peças do mecanismo incessante que faz uns brotarem e outros descerem terra adentro.

Formigas caminham sobre solo de folhas e tronco com musgo
Formigas na amazônia matogrossense, em Nova Floresta - Eduardo Knapp/Folhapress

Quando minha filha nasceu, não cheguei a ver a máquina, mas pude senti-la. Lembro da expressão compenetrada do obstetra. Cozida num caldo de anestesias, não consegui me inclinar direito para ver o nascimento. Estava com os olhos no teto de luzes frias, e claro que não elaborava mentalmente essa questão. Ainda assim senti as polias girando no meio dos meus ossos, o choro do bebê rebentando, a máquina alavancando a vida para fora, a grandiosidade da sua façanha.

Lembro quando meu pai atravessou uma depressão profunda. Seu tórax estava magro, os pelos embranquecidos da noite para o dia. Ele quase não levantava da cama, seus olhos não paravam de repetir "não quero viver" e, a despeito disso, aquele mesmo peito magro subia e descia indiferente a qualquer desejo, a máquina soberana a inspirar a vida.

Também diviso a máquina funcionando em outras sutilezas: nas plantas que despontam no asfalto, nos seios que despontam nas meninas, na língua que desponta na boca, no feto que desponta na barriga, no rabo que o pavão abre para seduzir a fêmea, nas flores que se fazem bonitas para atrair as abelhas. Nas mil conexões de um cérebro humano por segundo. No salto da ginasta que voa subvertendo a sua natureza de bicho terreno.

De repente, você está caminhando na rua quando vê o chão tomado por formigas, os corpinhos se movendo com diligência, como se um alto falante inaudível ditasse: vamos, sem parar, todas em frente. Ao levantar os olhos, você percebe que seus iguais não são diferentes, andando para lá e para cá a caminho do trabalho com seus fardos como folhas frescas que se renovam a cada dia, tão focados na própria sobrevivência quanto qualquer insetinho, tão frágeis quanto qualquer insetinho, todos —vertebrados e invertebrados— produtos da máquina, movidos por um mesmo e silencioso ritmo.

No avião que sobrevoa a terra, a mesma sensação. Tudo a fluir tão maquinalmente lá embaixo. As nuvens vagando. Os rios correndo. As ondas avançando numa mesma cadência. Os topos das montanhas como que recortados por um estilete. As copas das árvores encaixadas como num quebra-cabeça. Um solo costurado a outro com tanta perfeição que quase podemos ouvir o vento soprando: é a máquina, é a máquina, é a máquina.

Há pessoas que criam mitos para explicar a máquina. Há pessoas que perderam a sanidade tentando enxergá-la. Buscar demais pode ser perigoso, buscar de menos pode levar a estupidez. Não à toa divisamos o mecanismo só de vez em quando, num rasgo efêmero. Ainda que sejamos simultaneamente a peça e o todo, somos antes a peça. E não convém à máquina um parafuso solto.

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