Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Onça no novo uniforme da seleção mostra como o Brasil busca se enxergar

O tempo dirá se esta nova representação será vitoriosa como foi a do 'canarinho pistola' de 2016

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Associar animais a atividades humanas não é algo novo. Mas, há alguns anos vem mudando o sentido atribuído à seleção brasileira de futebol através da simbologia animal.

Em agosto passado foi apresentada a nova camisa da seleção. Sua principal inovação foi incorporar estampas de onça, tanto na camisa amarela quanto na azul. A CBF e a Nike, responsáveis pela confecção das camisas, argumentaram que a relação com a onça remetia à garra da equipe e da torcida.

Novo uniforme da CBF une boleiros a 'Pantanal' e divide opiniões - Nike e CBF apresentam novos uniformes em homenagem a onça pintada e à garra da nação que serão usados pela Seleção Brasileira de Futebol no Qatar em 2022 - Divulgação/Nike

Na camisa reserva, o "animal print", como é chamado esse tipo de estampa de onça, fica ainda mais visível, pois as marcas do felino foram pintadas de verde nas mangas. A mudança fez muitos internautas associarem a nova camisa à personagem Juma Marruá, da novela "Pantanal", mulher que virava onça quando brava. Segundo a Nike, tratava-se de uma coincidência, já que a camisa foi concebida muito tempo antes do lançamento da novela.

A campanha que promove o uniforme no site da Nike chama-se "Veste a garra". E explica: "Garra. É a vontade de seguir em frente. É sangue no olho. É pressão. Dentro e fora do campo. É driblar, pedalar, rabiscar, lutar. No país que não desiste nunca, garra é a segunda língua. É acreditar até o último segundo. É coletivo. Representa mais de 210 milhões de brasileiros. É a nossa garra. Veste a garra". Segundo afirmou um dirigente da empresa, o "animal print" representa o estilo de jogo do Brasil, "tão feroz quanto artístico".

Até bem recentemente, a seleção brasileira associava-se a simpatia, malandragem e amizade. Isso vem mudando, especialmente de 2018 para cá. A nova imagem da onça associa a brasilidade à determinação, foco, persistência e obstinação. Essa nova identidade animal teve um precedente: o canarinho "pistola".

Foi em 2016, em meio à crise que levou a contratação de Tite para técnico da seleção brasileira, que a CBF criou um novo canarinho no site da confederação. A novo mascote tinha um semblante sério e determinado, e estava distante de ser um personagem bem humorado, feliz e simpático, como tradicionalmente remetia o canário associado à seleção.

Gilberto Ratto, diretor de marketing da CBF, explicou na época: "Reparamos que, para essa [nova] geração, não podia ser uma mascote boazinha e bobinha. Tinha que ser uma que combinasse", disse. "Aí desenvolvemos esta personalidade e até um jeito de andar para ele".

Canarinho em vídeo postado no perfil da Seleção Brasileira de Futebol.
Canarinho em vídeo postado no perfil da Seleção Brasileira de Futebol - @cbf_futebol

A nova mascote caiu no gosto do público, que acabou batizando-a de "canarinho pistola", apelido que não foi incorporado pela CBF. Surgiram vários perfis nas redes sociais nas quais o canarinho pistola cobrava, xingava, pressionava e exigia dos jogadores a garra desejada em campo. Tal comportamento por parte da torcida digital espantou os idealizadores.

Incomodada com a interpretação dos internautas, em maio de 2018 a CBF lançou uma versão mais amigável da mascote. Em um tuíte da própria confederação, foi dito que ele serviria para ações sociais. Mas não houve a repercussão desejada e os dirigentes assumiram de vez o canarinho zangado: "Mesmo as crianças da ação social pediam o canarinho enfezado", disse Ratto às vésperas da Copa de 2018. "Então decidimos trabalhar apenas com a versão brava mesmo".

Uma das inspirações da CBF foram o touro do time de basquete Chicago Bulls e o galo do Atlético Mineiro. Para Ratto, não se tratava de uma ave enfezada ou ‘pistola’: "As pessoas falam que ele tem a cara de raiva, mas ele não é bravo. Ele é focado, é diferente. Ele tem a cara que é a cara de todo brasileiro antes de qualquer jogo da seleção", disse o dirigente à época.

A representação da seleção brasileira está mudando a olhos vistos. Desde 1954 o Brasil joga com a camisa amarela. É atribuída ao locutor Geraldo José de Almeida, que gostava de batizar jogadores com apelidos, a alcunha de "seleção canarinho" ao esquadrão brasileiro.

A imagem associada ao canarinho, animal inofensivo, era a do brasileiro boa-praça, simpático, alegre e festivo. Em 1982 o meio-de-campo da seleção (e bom cantor e sambista), Júnior, hoje comentarista da Globo, gravou a canção "Povo feliz" (Memeco/Nonô), mais conhecida pelo refrão "Voa, canarinho, voa", hino não oficial daquela equipe: "O verde toma conta do meu canto/ O amarelo, azul e branco/ Fazem o meu povo feliz/ E o meu povo toma conta do cenário/ Faz vibrar o meu canário/ Enaltece o que ele faz".

O último suspiro de uma mascote bonachona, simpática e alegre associada à brasilidade tinha sido o tatu-bola Fuleco, da Copa de 2014. O personagem sofreu críticas na época, muito em função do nome, junção de "futebol" e "ecologia", mas que no Brasil remete a coisa sem valor, furreca ou fuleiro. A vergonhosa derrota de 7 a 1 para Alemanha em solo nacional tornou qualquer tentativa de se recriar um animal simpático tarefa quase impossível.

De lá para cá, a polarização política, a crise econômica e os últimos anos de bizarrices bolsonaristas parecem ter aumentado a indignação da população. Some-se a isso que em 2022 faz 20 anos que não conquistamos nenhum título e nem mesmo chegamos às finais. Para um povo mal acostumado como o brasileiro, é muito tempo.

A onça na nova camisa da seleção aposta em associar a identidade brasileira a um animal que remete à força, garra e ferocidade. O Brasil vai se transformando e os animais são escolhidos de acordo com as representações que buscamos para nós mesmos. Será esta nova representação vitoriosa como foi a do tradicional canarinho? Só o tempo dirá.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto dizia que a mascote Fuleco era um tamanduá. O personagem é um tatu-bola.

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