Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Descrição de chapéu clima América Latina

Preservação ambiental que exclui pessoas pobres e racializadas atualiza colonialismo

Malcom Ferdinand sustenta em livro que europeus moldaram 'habitar colonial' que devora ecossistemas e subjuga humanos

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Qual a relação entre racismo, machismo e ecologia? Como a colonização do passado pode interferir no nosso presente? Revisitar este passado pode ajudar a erguer o véu da ignorância e nos permitir vislumbrar um futuro? Esses e outros temas estão em "Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do Mundo Caribenho" (Ubu), do ambientalista martiniquense Malcom Ferdinand.

As análises atuais sobre a emergência climática costumam desconsiderar a interseccionalidade inerente ao desafio que se impõe. Raça, gênero e especismo são fundamentais para compreender por que o iminente colapso ambiental não está atingindo todos da mesma maneira.

Homem negro com camisa branca e plantas ao fundo
Retrato de Malcom Ferdinand, autor de 'Uma Ecologia Decolonial' - Bénédicte Roscot/Divulgação

O debate também envereda pela velha dualidade entre natureza e cultura, meio ambiente e sociedade, que, segundo Ferdinand, estabelece "uma escala vertical de valores que coloca 'o Homem' acima da natureza". O próprio termo "Homem" e seu homólogo antropos reduzem a diversidade humana —homens, mulheres, ricos, pobres, brancos, negros e indígenas— a um grupo uniforme que, na prática, não existe.

Para Ferdinand, essa fratura não tem permitido avanços na solução dos problemas e a busca pela salvação se resume a uma reedição da velha Arca de Noé: alguns embarcarão, outros serão engolidos pela tempestade climática.

No cerne da questão, está a sobrevida do colonialismo e como esse evento moldou para sempre a nossa história, repercutindo em cada fração do nosso cotidiano. Daí a crítica ao termo Antropoceno, que nada mais é que uma ideia ocidental sobre a crise atual.

Esse imaginário apaga a história dos não brancos e o fator colonial. Para Ferdinand, os "colapsólogos" padecem da arrogância dos senhores da casa-grande; alertam para o curto-circuito da Terra, mas desprezam seus vínculos com a colonização e a escravidão modernas e com o racismo e o genocídio das comunidades autóctones.

Nascido na Martinica, Malcom Ferdinand é pesquisador da interseccionalidade entre a crise ambiental vigente e os processos históricos atuais, tendo como locus o Caribe. Foi nesta fração do continente que o Velho e o Novo Mundo "entraram em contato pela primeira vez tentando fazer da Terra e do mundo uma mesma e única totalidade".

Assolado por furacões e outros eventos extremos, o Caribe tem sido desafiado pelas acentuadas mudanças climáticas, em uma das regiões mais pobres das Américas, marcada pelo colonialismo e pela escravidão. Para Ferdinand, essa mudança de perspectiva é necessária, já que se trata de um deslocamento epistêmico, o que altera a paisagem da produção de discursos e saberes.

Poluição e degradação ambientais têm reforçado políticas de preservação que excluem ou exercem dominação sobre pessoas pobres e racializadas. Nada muito diferente do que foi introduzido pela colonização europeia nas Américas, que promoveu uma mudança radical na forma de se habitar a Terra, a que Ferdinand chama de "habitar colonial".

O habitar colonial criou uma ontologia de vida baseada na destruição de ecossistemas, no genocídio indígena, na desumanização e na escravidão dos africanos e seus descendentes. Promoveu o "altericídio", que é a impossibilidade de coexistência entre os diferentes. A colonização negou a alteridade e constituiu uma "mesmificação, de redução ao Mesmo, fazendo o habitar colonial uma habitar-sem-o-outro".

Também se ancorou na implementação e no fracionamento da propriedade privada da terra através das plantations, empreendimento colonial que se desenvolveu até chegar às grandes corporações de hoje. A exploração maciça de seres humanos é outro traço determinante desse habitar e se estende do passado ao nosso presente.

"A colonização significou a passagem de uma terra que venerava uma mãe para a uma terra que venerava o pai", escreve Ferdinand. A premissa é que o empreendimento colonial foi concebido e gestado por homens. Saberes, habilidades e noções de mundo das mulheres foram desconsideradas, o que modificou a relação dos colonizados com seu meio.

Diante do caos, uma das saídas defendidas por Ferdinand é o "aquilombamento": uma estratégia de resistência conhecida por nós, brasileiros, e por nossos vizinhos latino-americanos. O aquilombamento designa a prática dos sobreviventes, dos que resistiram ao horror da escravidão e escaparam das fazendas e oficinas urbanas para viverem no meio da mata, num "para-fora do mundo colonial".

Ferdinand conclui: "Diante de um habitar colonial devorador do mundo, os quilombolas colocaram em prática outra maneira de viver e de se relacionar com a terra". Eis o apontamento para o futuro.

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