Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Irrelevância não tem cor

Foto sem contexto e manchete acusatória inflamaram mais uma 'polêmica'

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A foto, à primeira vista, choca: Donata Meirelles, diretora da revista Vogue, sentada em um trono entre duas mulheres negras de trajes brancos. Era sua festa de aniversário. Uma celebração imagética da escravidão? O repúdio das redes não demorou. A verdade era mais nuançada: as mulheres ali obviamente eram quituteiras baianas em seu traje tradicional; não representavam escravas. E o trono era uma cadeira de candomblé. Em outras fotos, as baianas estão sentadas nas cadeiras. A própria Associação das Baianas (Abam) disse que não havia racismo ali.

Foi a escolha de uma foto sem contexto e a manchete acusatória de um site notório pelo jornalismo enviesado que inflamaram mais essa "polêmica". Lembrei-me da celeuma acerca da campanha da Dove em 2017. Na peça publicitária, uma mulher ia "mudando" de rosto e cor de pele (a cada troca de blusa, uma nova atriz aparecia), passando por diversos tons, para representar a diversidade de mulheres que a marca buscava atender. O problema é que uma dessas transformações era de uma mulher negra em uma branca. Bastou recortarem esse trecho específico da peça, apresentando-o isoladamente, para vender a mentira: a Dove estaria dizendo que, com seus produtos, a mulher negra (pior) se transformava na branca (melhor). O racismo estava na cabeça dos acusadores.

De lá para cá, nenhuma lição foi aprendida. Os ciclos de acusações bombásticas e pedidos de perdão seguem ininterruptamente sem que nada mude. E que mudança podem produzir? Suponha que, como consequência, a cultura afro-baiana jamais seja usada como temática em festas (que voltarão para havaiana, árabe, japonesa etc.). O racismo terá diminuído em um grão sequer?

Enquanto isso, no morro do Fallet, no Rio, 13 jovens foram mortos pela polícia. A maioria era de pretos e pardos. A relação com o racismo aí não é direta —tanto que entre os jovens mortos, alguns eram brancos—, mas o racismo tem tudo a ver com a imagem preconceituosa padrão do jovem "bandido" a ser exterminado pelas forças do Estado. Essa notícia, contudo, não gerou a mesma repercussão. Segundo levantamento do professor Pablo Ortellado, do Monitor Digital do Debate Público, a notícia da chacina teve até o momento cerca de 10 mil compartilhamentos contra 18 mil da notícia da festa de Donata Meirelles. Estamos viciados em discussões de irrelevâncias simbólicas e perdemos qualquer desejo pelo real.

O governo Bolsonaro dá mostras de que fará uma investida contra as cotas —política de sucesso que cria oportunidades reais para jovens negros. No campo da segurança pública, a bola da vez é dar mais espaço para a violência policial, que, sabemos, tem um recorte racial. E nem é preciso dizer quais as intenções da bancada evangélica para as religiões afro, que bem ou mal eram celebradas na festa de Donata Meirelles. Assuntos sérios não faltam.

Uma baiana pode posar de pé ao lado de uma branca sentada? Uma mulata clara pode interpretar uma cantora preta retinta? Um ator branco pode pintar o rosto de preto? Um oriental pode usar turbante? É sempre possível se justificar dizendo que, de algum modo, o suposto racismo desses casos alimenta a violência racializada que tira vida de jovens na periferia. É um jeito de aplacar a própria consciência. Mas e se todo o tempo e energia gastos nessas discussões não contribuírem em nada para promover a igualdade racial no país?

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