Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Quando os EUA saem de cena, um poder ainda pior ocupa seu lugar

Tragédia no Afeganistão ensina que a capacidade de uma potência de transformar um país invadido é muito limitada

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A saída apressada das tropas americanas do Afeganistão foi a primeira grande derrota do governo Biden. Ficarão marcados na História os apelos desesperados de mulheres afegãs, sabendo que o regime que chegava para tomar conta de seu país iria ou matá-las ou, na melhor das hipóteses, reduzi-las à condição de subcidadãs —proibidas de estudar, trabalhar e mesmo de mostrar seu rosto em público.

Um dos aspectos mais sórdidos é a cumplicidade de muitos homens, que sabem que serão beneficiados. Segundo o relato de uma cidadã afegã para o The Guardian: “Os homens ao redor zombavam das meninas e mulheres, rindo de nosso terror. ‘Vá e coloque seu chadari [burca]’, falou um. 'São seus últimos dias de saírem às ruas’, disse outro. 'Vou me casar com quatro de vocês em um dia’, disse um terceiro'.”

A violação iminente de direitos humanos em larga escala poderia facilmente justificar uma mudança de planos, uma extensão para ajudar a evacuar refugiados e garantir-lhes direitos humanos básicos. Se existe algo que justifique a extensão da presença militar em um território estrangeiro, é isso.

Com todos os seus defeitos, os EUA ainda eram muito melhor do que as alternativas. Quando o poderio militar americano —sim, injusto e violento— sai de cena, o que toma seu lugar não são os direitos humanos, a concórdia e a paz, mas poderes muito mais injustos e violentos. Isso vale tanto para grupos guerrilheiros extremistas como para as potências concorrentes —Rússia e China— que também buscam ter influência na região e estão animadas para negociar com o Taleban.

Houve um claro erro tático, baseado numa previsão otimista, sobre quanto tempo o governo afegão resistiria. E, no entanto, estrategicamente, a defesa que o presidente Biden fez de sua decisão é irretocável.

Os EUA ocuparam o Afeganistão por 20 anos. Mais de US$ 1 trilhão, sem falar em milhares de vidas, foi perdido. O governo afegão recebeu tecnologia e recursos para ter suas Forças Armadas, que chegaram a 300 mil soldados. E, mesmo assim, eram incapazes de andar por conta própria. Não havia qualquer motivo para crer que a situação mudaria em alguns meses, anos ou mesmo décadas. Ficar era prolongar o inevitável.

Uma vez tendo invadido o país, os EUA adquiriram uma responsabilidade. Ela é, contudo, ilimitada? Eles têm a obrigação de ficar por toda a eternidade gastando recursos e pessoas para participar de uma guerra civil estrangeira sem qualquer perspectiva de resolução?

A política externa de um país sempre obedecerá a seus interesses. Se esses interesses, contudo, convergirem com uma agenda de direitos humanos, liberdade e paz, ela pode ser virtuosa. Nesse caso, divergiu. Será que faríamos diferente se fosse o nosso país? Da parte das demais nações democráticas, tudo o que podemos fazer é negociar e facilitar a imigração de afegãos que desejem escapar do Taleban. Seremos capazes sequer desse pequeno gesto?

Se fica uma lição dessa tragédia, é que a capacidade de uma potência de transformar um país invadido é muito limitada, assim como sua disposição para fazê-lo. Biden disse que o objetivo dos EUA no Afeganistão nunca foi “construir uma nação”. Talvez devesse ter sido. Lembremos disso da próxima vez que a tentação da intervenção americana for proposta para derrubar algum tirano, seja de que ideologia ou religião for. Destruir é fácil; difícil é evitar o caos resultante.

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