José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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José Manuel Diogo
Descrição de chapéu Portugal União Europeia

O que aprendi conversando com um piloto na rota aérea Portugal-Brasil

Comandante parecia já ter atravessado o oceano umas mil vezes nas quase quatro décadas dedicadas à aviação

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Sentou-se ao meu lado e me cumprimentou como se fosse a primeira vez que falava com alguém depois de alguma coisa importante ter acontecido. O comandante Solar —vou chamar-lhe assim— trazia no peito a dor da perda, mas também a alegria da criação.

Companheiro de rota, num desses voos transatlânticos que hoje cruzam o mar centenas de vezes por mês ligando Portugal e o Brasil, o comandante Solar foi para mim surpresa e inspiração.

Fotografia mostra vários aviões em um aeroporto em um dia nublado. Os aviões estão em diferentes posições na pista, alguns taxiando e outros parados. A vegetação verde é visível em primeiro plano, e ao fundo, há edifícios e outras estruturas do aeroporto.
Aviões em aeroporto de Lisboa, em Portugal - Pedro Fiuza - 30.jan.21/Xinhua

O comandante parecia já ter atravessado o oceano umas mil vezes nas quase quatro décadas dedicadas à aviação, mas continuava a se maravilhar com o voo improvável dos pássaros de ferro.

"Já levei 299 passageiros", disse ele. Foi uma vez que também havia uma criança. "São muitas almas", respondi. E ele sorriu. No Airbus só cabem 298, mas a alma extra de um recém-nascido o fez bater o recorde.

O comandante Solar sabe tudo sobre aviões e comenta as entranhas assíncronas dessas prodigiosas máquinas com aquele mesmo encanto que o cigano Melquíades, personagem de Gabriel Garcia Marquez, falava sobre a invenção do gelo, em Macondo, no livro "Cem Anos de Solidão".

Dá para jogar muita conversa fora em dez horas e, nos 9.000 quilômetros que separam Lisboa e São Paulo, falamos de altos voos, passagens rasantes, defeitos de fabricação e burocratas inúteis que não fazem ideia nenhuma de como é belo voar.

Entre os faróis de Dakar e Recife passamos a pente-fino aquilo que ninguém sabe sobre a metade dos desastres aéreos das últimas décadas, as operações de merge & acquisitions da indústria aeronáutica em três continentes e os erros de construção nos cockpits de algumas aeronaves que, sem ninguém prever —é a engenharia estúpidos!— causam acidentes mortais.

Mas o que mais me impressionou no comandante Solar foi a luz que irradiava da sua face franca de homem feliz por definição e a quem o destino pregou uma partida, dessas terríveis e de que não vale a pena falar aqui.

Disse-lhe que, na verdade, nada acontece por acaso e tudo —mesmo as grandes tristezas, porque aconteceram de fato— , um dia se revestirão de alguma relevância inquestionável em nossas vidas.

Sei que isso não acalmou em nada a dor da sua perda. Na verdade todos sabemos que, por mais empatia que consigamos ter, nunca conseguimos sentir o que os outros sofrem.

Mas voar opera verdadeiros milagres, fenômenos difíceis de explicar, como gaiolas de Faraday, fogos de Santelmo, triângulos das Bermudas e mesmo, sem saber bem como ou porquê, a descoberta de uma nova amizade entre homens de lá e de cá.

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