Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Sobre desamparo e esperança

É à esperança que recorremos quando tudo parece ter fim

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Certa feita trabalhei com uma pessoa, aprovada em um dos concursos para a universidade para um cargo de nível técnico. Seu nome era Bernard Kenj. Seu currículo era para mim uma preciosidade.

Formado em história, pela USP, era graduando em Direito pela Faculdade de Direito da USP e tinha entre suas experiências profissionais funções como a de oficial de justiça à de agitador cultural.

Um perfil perfeito tanto para mim, que adoro essas interdisciplinaridades, como para o centro de estudos que eu coordenava.

Na foto, vista da Universidade de São Paulo de cima da torre do relógio - Bruno Santos/Folhapress

Olhos cor de garrafa de guaraná, sorriso fácil com dentes de fumante, tom de voz de gente que quer paz, Bernard tinha uma calma e uma capacidade ímpar de compreender rapidamente o que a gente queria dele sem fazer muitas perguntas.

Pai de dois filhos, de quem tinha orgulho, e marido de uma “japinha” amada, como gostava de se referir à esposa, diretora de uma escola pública, foi ele o idealizador da forma gráfica do projeto “Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros”, batizada por nós de mandalas.

Muitas vezes, saíamos para almoçar pelos bandejões da USP, quando ainda podíamos fazê-lo na condição de funcionário e docente. Sentados ali, costumávamos divagar pelas coisas do mundo e da universidade. Bernard tinha a sensibilidade do poeta e a objetividade de um homem da lei, por isso analisava a conjuntura sempre com a rigidez de uma rocha de granito e a doçura de um pôr do sol do outono.

Num de nossos almoços no bandejão da Química, discutíamos os impactos das denúncias e prisões que ocorriam naquele que deveria ser o ano de 2011, talvez 2012. Vivíamos ainda tempos de pujança, e não passava pela cabeça do mais pessimista o que ainda estava por vir.

Falávamos da extensão de todo aquele movimento e dos crimes que estavam sendo julgados. Disparei um dos pensamentos de meu pai, que dizia que todo crime de colarinho branco deveria ser inafiançável, isso porque os desdobramentos desse tipo de delito levavam à quebra do estado de bem-estar social.
Crianças ficavam sem escola, pessoas morriam nos hospitais, a pesquisa de base deixava de existir nas universidades porque alguém, em algum momento, retirou o dinheiro público de impostos e obrigações não pagas.

Já do lado de fora do restaurante, depois de acender o enésimo cigarro do dia, ele emendou: “Para mim, crime inafiançável deveria ser todas as promessas não cumpridas. Sabe por quê? Porque quando você promete algo para alguém, e não cumpre, a esperança que reside nesse outro, que acreditou no que lhe foi dito, morre um pouco. E ninguém vive sem esperança. Roubar a esperança de alguém é um dos maiores crimes que um ser humano pode cometer”.

Bernard se foi do centro que eu coordenava, depois de uma promoção mais do que merecida. Vítima de um infarto fulminante, não teve tempo de ver tudo o que fizeram com os sonhos e a esperança de tantos brasileiros.

Suas palavras sobre a esperança me acompanham sempre que me vejo diante de situações que parecem ser maiores e mais fortes do que somos ou desejamos.

A vivência de uma cena que o torna impotente rende apenas o desamparo. Seres vivos nessa condição, sem esperança, são levados ao adoecimento, e no limite, à morte, provando que a esperança não é apenas uma palavra bonita, que rende bons versos.

Não é à toa que, de tudo o que escapou do vaso dado por Zeus a Pandora tenha restado tão somente a esperança. Por menor e mais frágil que ela possa parecer, não houve poder divino que a retirasse de perto da humanidade. Poderosa, mesmo quando no formato de uma fagulha, é a ela que recorremos quando tudo parece ter fim. É dela que brilha a luz no fim do túnel.

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