Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Nunca houve um trans na obra de Dostoiévski. O russo era transfóbico?

Devo salientar que acho toda essa cartilha de 'xfobia' um ridículo absoluto

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O título desta coluna é irônico. Não há qualquer elemento histórico para se dizer tal absurdo.

A menos que, como se tornou senso comum a histeria no debate público relacionado a temas ligados a sexo (Freud está morrendo de rir no além), alguém saque do fundo da sua ignorância esquemática a ideia de que, se nunca houve personagens trans na obra do grande russo, ele era, por definição, transfóbico.

Devo salientar que acho toda essa cartilha de “xfobia” um ridículo absoluto.

Deixando de lado a ironia, vamos aos fatos. Antes que alguém resolva cancelar Dostoiévski o acusando de reacionário, vale a pena tentar entender que comparações entre a Rússia do século 19 e nossas categorias políticas polarizadas são fruto da literalidade tosca que domina o pensamento acadêmico hegemônico.

Ilustração com várias pessoas vestindo trajes de época. Algumas com elementos de vestuária e cabelos femininos em pessoas com barba e bigode, outras com roupas tradicionalmente masculinas e cabelos e expressões femininos
Ricardo Cammarota/Folhapress

A Rússia não é passível de paralelos simples em história. Comparar Putin a Bolsonaro é oportunismo. Putin é um contínuo histórico desde, no mínimo, os Romanov (dinastia que reinou de 1613 a 1917), passando por Lênin e Stálin, compondo a resistência russa às crenças ocidentais, inclusive no
âmbito dos mecanismos constitucionais representativos.

Num espaço de 60 anos, grosso modo, ela foi do neolítico (que era a condição de vida dos “mujiques”, o camponês russo) ao capitalismo e ao comunismo.

O feudalismo nunca foi uma realidade plena na Rússia, que vê a si mesma como uma nação que nos contempla desde o futuro. Passou do nosso passado ao nosso futuro na velocidade da luz.

Lembremos que a utopia socialista na Rússia foi realizada no plano factual, coisa que nunca aconteceu nas nações europeias ocidentais que inventaram essa utopia a partir da revolução jacobina na França em 1789.

A partir de 1840, em pleno reinado de Nicolau 1º, criador do período de maior repressão ao pensamento público na Rússia pré-soviética, a inteligência russa começou a assimilar de forma veloz as ideias ocidentais.

O capitalismo industrial selvagem inicia sua instalação na Rússia a partir dos anos 1870, durante o reinado do czar Alexandre 2º, o reformador e emancipador dos servos em 1861.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881) viveu esse processo. Intelectual ativo, condenado à morte e depois à Sibéria —depois perdoado—, circulou entre o que podemos chamar, com razoável inconsistência, de esquerda e direita.

O conjunto de sua obra literária e jornalística de então demonstra as sutilezas de sua adesão, uma hora mais próximo à crença numa missão cristã civilizadora russa, baseada na idealização do povo russo (assim como muitos jovens do “movimento ao povo” nos anos 1870, um populismo rousseauniano), outra hora mais próximo à geração dos humanistas ateus que serão os ancestrais do bolchevismo.

Essa geração ficou conhecida, a partir do romance “Pais e Filhos”, de Ivan Turguêniev, como niilistas. Nicolai Tchernichéski, niilista histórico, autor de uma tese sobre o materialista Ludwig Feuerbach, escreveu “O Que Fazer?”, que foi o livro de cabeceira de Lênin muito antes de este entrar em contato com o marxismo.

Uma excelente indicação para não se cair na falácia do “Dostoiévski reacionário” é o percurso da especialista em cultura russa do século 19 Aileen M. Kelly, que, entre outros títulos, escreveu “Toward Another Shore” em 1998.

Os textos tardios da coluna jornalística de Dostoiévski, conhecida como “Diário de um Escritor”, não sustentam a falácia referida acima. Pelo contrário, o grande russo criticou duramente os reacionários que eram, por exemplo, a favor de um capitalismo selvagem ou de manter os camponeses no abismo da ausência de uma educação pública universal.

Comentando sua obra “O Adolescente”, de 1875, Dostoiévski afirma que “sua principal ideia é a desintegração” da alma dos jovens. Sua intenção era fazer uma anatomia da alma, em eixo histórico, no qual a modernidade surge como ethos niilista.

Somos niilistas sem saber. Dostoiévski é teólogo, mas seu cristianismo não o tornava cego ao valor das denúncias do humanismo ateu dos jovens. A Rússia não cabe na pobreza esquemática contemporânea.

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