Manuel da Costa Pinto

Jornalista, mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP

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Manuel da Costa Pinto
Descrição de chapéu

Livro russo 'Nós' combina ficção científica com reflexões sobre ética

Colunista sugere narrativa russa, filme 'Milada' e disco de David Tanenbaum

LIVRO

Distopia soviética


"Nós", do russo  Ievguêni  Zamiátin (1884-1937), não é a primeira distopia tipo de narrativa que, na contramão da utopia (termo criado no século 16 por Thomas More, na obra homônima que descrevia uma sociedade perfeita), postula um mundo hipotético de flagelo social e político, projetando no futuro os vetores negativos do presente.

Trata-se, no entanto, de uma obra precursora de outras distopias como "Admirável Mundo Novo", de Aldous  Huxley, e "1984", de George Orwell. Essa nova tradução, diretamente do idioma original, com posfácio em que Cássio de Oliveira pontua o diálogo de Zamiátin com a tradição literária russa, lança o leitor no universo concentracionário do Estado Único governado pelo Benfeitor, em que todos hábitos cotidianos (desde a alimentação até o sexo) são regrados.

Escrito por volta de 1920, no auge do triunfalismo ideológico bolchevique, "Nós" combina elementos de ficção científica com reflexões sobre ética e tecnologia deflagrados por um apocalipse ecológico —o que confere ainda mais atualidade a esse clássico que já foi publicado no Brasil com o título "A Muralha Verde".

"Nós". Autor: Ievguêni Zamiátin. Tradução: Francisco de Araújo. Editora: 34 (2017, 288 págs., R$ 55)

Livro "Nós", do russo Ievguêni Zamiátin
Livro "Nós", do russo Ievguêni Zamiátin - Reprodução/Editora 34

 

FILME

Farsa e martírio

A Primavera de Praga (que em 1968 reivindicava um socialismo com face humana) e a Revolução de Veludo (que em 1989 pôs fim ao regime comunista de modo pacífico) nos acostumaram à ideia de que a antiga Tchecoslováquia foi uma exceção no âmbito dos países sob a zona de controle soviético, com um governo mais brando e liberal. A trajetória de Milada  Horáková desfaz essa imagem benigna.

Presa pelos alemães durante a Segunda Guerra (por sua participação na resistência ao nazismo) e deputada no breve período democrático do pós-guerra, Milada foi acusada de conspiração contra os comunistas que tomaram o poder no país em 1948, presa, torturada e executada em 1950.

Nessa produção tcheca falada em inglês, a atriz israelense Ayelet Zurer consegue transmitir todo o senso de obstinação e dignidade de Milada, numa narrativa convencional, porém eficiente, centrada na farsa judicial do julgamento dessa mulher notável, que se tornou mártir da luta contra o totalitarismo.

"Milada". Direção: David Mrnka. Elenco: Ayelet Zurer, Robert Gant, Vica Kerekes. Produtora: Loaded  Vision  Entertainment (2017). No Netflix

DISCO

Ícone russo

O aclamado violonista norte-americano David Tanenbaum registra aqui a integral das obras para violão escritas por Sofia Gubaidulina, compositora que, nascida em 1931 na ex-União Soviética, é um dos ícones da música russa e contemporânea.

As quatro peças ora têm acompanhamento de cordas, como "Repentance" e "Sotto Voce" (com violoncelo, contrabaixo e adição de outros violões), ora são para instrumento solo, como "Serenade" e "Toccata" (esta, em primeira gravação mundial).

E, em todas elas, desponta a capacidade de Gubaidulina de extrair novos timbres dos instrumentos e imprimir a suas composições uma liberdade criativa cujo caráter muitas vezes áspero ou melancólico dá a dimensão de sua independência frente às constrições da estética soviética —além de sua capacidade de renovar, com apenas quatro obras, o repertório do violão.

Sofia Gubaidulina - Complete Guitar Works. Artista: David Tanenbaum (violão) e outros. Gravadora: Naxos (2017, R$ 46,10, importado)

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