Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Ofensas sem perdão

Vitimização, honra e dignidade aparecem em 'O Insulto' e 'Três Anúncios para um Crime'

Ilustração Marcelo Coelho
- André Stefanini/Folhapress

Enquanto se repetem os episódios de massacre nas escolas, cresce nos Estados Unidos o interesse pelo que se chama de "microagressão". Alguns exemplos.

Segurar com mais firmeza a alça da bolsa quando um negro entra no elevador. Elogiar alguém de traços orientais porque "fala bem inglês". Ou repreender o filho que faz birra e choraminga dizendo que assim ele parece "uma mulherzinha". Se alguma mulher estiver por perto, ela pode se considerar "microagredida".

Os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning resumem os debates em torno do assunto (o artigo está disponível em www.researchgate.net), e tentam contextualizá-lo com uma teoria interessante.

Existiriam três tipos de cultura, conforme as reparações e as represálias que surgem quando uma pessoa é atacada.

Nas "culturas da honra", está em jogo a reputação do ofendido. Se alguém xingou sua mãe, por exemplo, você tem de desafiar o agressor para um duelo; caso contrário, todos irão considerá-lo um frouxo.

Já as "culturas da dignidade" se estabelecem quando o Estado é mais presente, permitindo que se busquem reparações na Justiça, e não na ponta da faca. Aqui, o direito de ser respeitado pertence naturalmente ao indivíduo, e ele procura punir quem atentou contra isso.

Seria o oposto, dizem Campbell e Manning, da situação anterior, em que a opinião dos demais ("Fulano amarelou") pode destruir a respeitabilidade do ofendido.

Os autores identificam uma terceira "cultura moral" hoje em dia: a da "vitimização".

Como na "cultura da dignidade", busca-se na Justiça ou no espaço público a reparação por uma ofensa. Não estaria mais em jogo a "dignidade" da pessoa, mas sim o contrário. É por enfatizar sua condição de marginal e oprimido, e não o valor próprio como indivíduo, que o atacado exige compensações, mesmo em casos de mínima importância.

A tese de Campbell e Manning tem algo de duvidoso, mas vale a pena lembrá-la a propósito de dois excelentes filmes em cartaz.

Em "Três Anúncios para um Crime", de Martin McDonagh, a situação na cidadezinha de Ebbing, no Missouri, assemelha-se à de uma aldeia siciliana do século 19.

Sim, há Justiça, há polícia, há até noticiário de TV —mas o jogo é primitivo, com policiais agindo mais ou menos como bem entendem, conforme o que lhes dita a honra supostamente ofendida.

A protagonista do filme é uma durona, pronta a fazer justiça pelas próprias mãos. Mas precisa de ajuda policial para descobrir os autores do crime que ela quer vingar. Nesse caso, a polícia age segundo a lei. Não há meios legais para descobrir o criminoso.

Uma superestrutura "civilizada" se ajusta mal a um lugar em que quase todos os habitantes do lugar agem brutalmente —e quem não faz isso é "mole", "mulherzinha" etc.

Terminamos gostando de todos os personagens, e detestando-os também --pela violência que sofrem e pela desonestidade com que se vitimizam; pela graciosa coragem que possuem e pela covardia mesquinha que manifestam ao mesmo tempo.

Um Judiciário equilibrado e um Estado em bom funcionamento se revelam no Líbano de "O Insulto", filme de Ziad Doueiri de que não se pode perder um minuto de projeção.

Aqui, a "cultura da dignidade" e a "cultura da vitimização" se misturam com um grande complicador. O país passou por uma guerra civil, e nenhuma das partes envolvidas pode se livrar da acusação de ter cometido atrocidades.

Um xingamento banal em razão de uma calha quebrada termina reabrindo traumas profundos na vida de um refugiado palestino e de um mecânico de automóveis cristão.

A microagressão que cada um sofreu tem raízes antigas --e um curioso senso de honra, dignidade ou pudor faz com que, em pleno tribunal, continuem a esconder todas as circunstâncias da disputa jurídica.

Que advogados! Que atores! Que filme! Que problemas! Para garantir a ordem do Estado, optou-se por "virar a página" da guerra civil libanesa. Mas, na vida de um indivíduo, a página não quer virar. Ao mesmo tempo, ninguém quer reler o que ali foi escrito, com sangue.

Microagressões? Vitimização? No Brasil, predomina o "deixa pra lá". A cultura da "não reparação". Penso no Fabiano de "Vidas Secas"; será que continuamos na mesma? Após "O Insulto" e "Três Anúncios", ficamos devendo um filme sobre isso.

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