Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

Neymar, suas quedas, seus cabelos

Você critica os fingimentos e chiliques do astro? Tome cuidado, pode ser machismo

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Tenho pouca pretensão de, sozinho, reformar o mundo. Algumas coisas, entretanto, gostaria de decretar de forma irrevogável, sem possibilidade de embargos no Supremo.

Seriam mudanças modestas.

Por exemplo, as roupas da rainha da Inglaterra. A começar daquela coleção de cartolinhas que, desde 1960 pelo menos, só mudam de cor.

Quem viu o seriado “The Crown”, mostrando Elizabeth no começo do reinado, sabe que ela era uma moça com doses razoáveis de vaidade, bastante incomodada com a superior elegância da primeira-dama americana quando John F. Kennedy visitou a Inglaterra.

Passam-se os anos, e a rainha terminou metida em horríveis conjuntinhos monocromáticos de saia e casaqueto. A idade vai diminuindo sua estatura, a cartola se enterra nos ombros, e eis que, conforme o dia, Elizabeth se assemelha a uma beterraba, uma alface, uma couve ou um pepino.

Enquanto Kate Middleton e, em menor medida, Meghan Markle dão shows de elegância em eventos oficiais, a pobre Elizabeth sequer tem o direito de usar uma coroa —só aquela tampa colorida na cabeça.

Só que, como dizia o velho Hegel, o real é racional, e o racional é real. Leio que, ao menos, existe razão para a roupa da rainha ter uma cor só. Trata-se de uma medida de segurança: sempre será fácil identificá-la no meio da multidão.

Mas, como também dizia o velho Hegel, a coisa é dialética: se para os guarda-costas é fácil identificá-la, também o trabalho de atiradores inimigos, situados em postos estratégicos, há de tornar-se mais simples.

E, se importa saber sempre onde ela está, minha proposta seria usar uma tiara de LEDs, ou uma coroa de estrelinhas, em vez daquele prosaico disfarce de coelho da Alice —os sapatos combinando— em que a puseram faz mais de 50 anos.

Digo tudo isso pensando na simpática argumentação de Lulie Macedo, na Folha deste sábado (23), em favor dos cortes de cabelo bizarros dos futebolistas nesta Copa.

Como sabem todos que já usaram uniforme, diz a colunista, “o que sobra para expressar alguma identidade é cabelo, pele (tatuagem) e tênis (ou chuteira)”. Neymar e seus colegas teriam razão, assim, para tantas acrobacias capilares: como todo ser humano, rebelam-se contra o anonimato.

Digo de outra forma.

Cada um desses astros está de tal modo acostumado a atrair as atenções (em boates, restaurantes, hotéis) que não consegue se adaptar à única situação em que é simples mortal, ao lado de outros 21, na democracia do campo.

Arrisco uma explicação suplementar: assim como a roupa da rainha da Inglaterra, o cabelo de cor diferente e corte absurdo ajuda a identificar cada jogador em campo.

O que serve, naturalmente, para os companheiros de time serem mais rápidos na hora de passar a bola. Só que também ajuda os adversários, na hora de marcar e fazer faltas.

O fato é que não me irrito muito com as invencionices de Neymar em matéria de cabelo. Nem mesmo com as quedas, simulações e queixas que prodigalizou nestes jogos da Copa.

É provável que, fora a malandragem para cavar falta, todo seu comportamento tenha uma base comum.

O talento extraordinário de Neymar sempre chamou a atenção. Ele poderia ser como Messi, cuja modéstia o leva a se esconder atrás da própria genialidade; desaparece atrás da bola. Mas ele optou pelo inverso: o cabelo, as tatuagens, seriam como uma forma de driblar as atenções gerais, um chamariz, de modo a esconder aquilo que realmente o faz um jogador fora de série.

Surge um zagueiro e faz falta nele. Neymar rola no gramado, assume expressões de tragédia grega, enfurece-se, fica ofendido. Estrelismo? Sem dúvida.

Mas sua irritação parece, no fundo, vir de outro lugar. Ele se irrita como se os adversários fossem paparazzi; cada falta que sofre é uma invasão de sua privacidade.

Impedem-no de ser ele mesmo. Se o atacaram, não foi pelo perigo de gol, mas porque implicaram com seu cabelo, seu sucesso, suas tatuagens.

Não foi vítima de um empurrão: foi vítima de vandalismo, de assédio, de abuso.

Assim —como todo mundo que se vê atingido por crimes de ordem moral—, Neymar precisa de fato exagerar, ou melhor, teatralizar seus sentimentos.

Não me entendam mal. Quem ouve um xingamento ou recebe algum tipo de assédio realmente sofre com isso. Só que, como seu sofrimento pode ser interno, invisível, é necessário assinalar o evento com especial estridência, de modo a evitar ambiguidades.

Neymar é um assediado. Será muito machista quem disser que, com aquela pintura no cabelo, ele estava pedindo por isso.
 

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.