Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Pacaembu agora abriga o admirável mundo novo das mercadorias

Em lugar do tupi, a língua dos 'brands' e logos; Nike, Microsoft, McDonalds, Coke, Tesla

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Os novos caciques do Pacaembu comemoraram na quarta-feira seu triunfo sobre a tribo tupi que um dia foi dona do pedaço. Uma corporação cucaracha pagará R$ 1 bilhão para, durante três décadas, pôr seu nome no estádio art-déco inaugurado em 1940.

Tinha razão Demócrito, o filósofo grego mais por fora que bunda de índio —tupi, no caso— quando disse que "as palavras são a sobra da ação".

Porque a nomenclatura do estádio mostra como flores tóxicas do presente brotam de raízes pútridas do passado.

O logotipo da várzea rebatizada traz primeiro a imagem do aperto de mãos da multinacional que se apropriou do nome. Depois, em letras graúdas, botou-se "Mercado Livre Arena". Abaixo, como uma acanhada nota de rodapé, vem o vencido "Pacaembu" do povinho originário.

O aperto de mãos significa fechar um negócio. O acordo comercial ocorre no mercado, lugar onde uns vendem o que produzem e outros compram o que consomem. Não é um mercado chinfrim; nele atuam uma baita multinacional e uma alta ideologia: o Mercado Livre e o livre mercado.

A megaempresa opera na América Latina toda. Tem 30 mil funcionários e não produz picas; vende e entrega mercadorias à mostra no site. O dono é o argentino mais rico do sistema solar, Marcos Galperin.

A ideologia é a do liberalismo econômico, o "laissez-faire" que começou com Colbert e passou por Adam Smith e Stuart Mill. Ela é hoje aríete da desregulamentação, arma com a qual o mercado acossa e arromba Estados —vide Javier Milei, apoiado com fervor pelo mascate Marcos Galperin.

No lado esquerdo há um indígena segurado arco e flecha à direita um jovem de boné, fones de ouvido segura uma caixa de papelão. Com a mão direita o jovem oferece a mão para o indígena. No alto à esquerda, a logomarca do Mercado Livre acompanhada das palavras "mercado livre arena". Abaixo, um balão de fala escrito "Pacaembu" sai da boca do indígena.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 2 de fevereiro de 2024 - Bruna Barros

O neo-Pacaembu saiu da pia batismal pingando sangue. Ele goteja do terceiro termo do novo nome: arena. Em latim, a palavra quer dizer areia. Não é uma areia qualquer, mas a que recobria o chão dos coliseus romanos. Sua função era absorver o sangue dos gladiadores que ali se trucidavam.

O Mercado Livre Arena é, pois, um anfiteatro onde a nata transnacional pratica a política da antiga aristocracia romana: pão e circo para a plebe. Mas, com o estádio privatizado e movido a grana, a plebe ignara não terá acesso a ele. Venderá churrasquinho de gato na porta.

Por fim, o Pacaembu propriamente dito. O vocábulo aborígene não é somente hipocrisia, tributo do vício à virtude. Também diz a meia-voz que a arena multiúso (argh) é fruto da elite público-privada de agora. Esclarecida, ela derrama lágrimas crocodilescas pelos tupis que a elite de outrora extinguiu.

"Pacaembu" quer dizer atoleiro. Denominava o riacho que ia do espigão da Paulista até o rio Tietê e, por vizinhança, os nativos que viviam nas margens alagadiças. Os jesuítas os amansaram e o consórcio luso-bandeirante mandou-lhes balaços de bacamarte na testa.

Logo, fique esperto e seja politicamente correto: faça três segundos de silêncio em homenagem aos mortos para se dilatar a fé, o império e o mercado d’além-mar. Aí curta os trinados de Wesley Safadão no Mercado Livre Arena Pacaembu —um nome com a eufonia de uma rabeca velha.

Em 1958, o estádio passou a se chamar Paulo Machado de Carvalho, o marechal da vitória canarinho na Copa, conhecido como cabeça de jaca devido ao crânio oblongo. Apenas locutores usavam o nome oficial.

Maluf, o huno, se apossou da prefeitura em 1969. Pôs abaixo a concha acústica curvilínea e fez subir o tobogã tenebroso —que alegrou empreiteiros e deve ter rendido uma piscina olímpica de dólares.

Bruno Covas vendeu o estádio ao desconhecido grupo Allegra Pacaembu. Ele está pondo de pé hotel, lojas, restaurantes e centro de convenções. Mas a ênfase será em espetáculos atordoantes. Se Bolsonaro voltar, periga petistas serem jogados aos leões para atrair fascistas à arena.

Ela deveria estar pronta, mas as obras estão mais atrasadas que as da Sé de Braga. Ao se justificar, o chefe da Allegra, Eduardo Barella, disse que o Pacaembu terá "uma abertura faseada". Quis dizer inauguração em fatias, sabe-se lá quando, e veio com a batatada fraseada.

Como usou também "naming rights", merece o quê? Ser empalado no obelisco do Ibirapuera, transplantado para o Mercado Livre Arena Pacaembu? Não, claro. São as múmias avessas ao progresso que têm de se amoldar à língua dos bambambãs do turbo-mercado.

É a língua dos "brands" e logos —Nike, Microsoft, McDonald’s, Coke, Tesla, Apple e quejandos—, entes que divulgam e vendem, além de mercadorias, modos de vida. Seu admirável mundo novo é um cruzamento entre duty free com shopping center, um Pacaembu do qual não dá para fugir nunca.

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