Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Livros América Latina

Romance de Ariel Dorfman discute se a morte de Allende foi épica ou trágica

Escritor lança 'The Suicide Museum', livro de autoficção em que conjuga política e catástrofe ambiental

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Salvador Allende estava na contracorrente quando foi eleito presidente, em 1970. Divergia da esquerda latino-americana, que, com o triunfo da guerrilha cubana, aderira à luta armada. Fidel Castro deu-lhe de presente uma AK-47

Morto, Allende está totalmente ultrapassado. Não só por ser marxista, mas porque quis conciliar democracia e revolução, socialismo e eleições. Como a Casa Branca, o empresariado e os militares de Pinochet discordavam dele, derrubaram-no. Todos o esqueceram.

Ariel Dorfman, não. O escritor nasceu na Argentina, passou a infância nos Estados Unidos e se radicou no Chile, para onde seus pais escaparam ao serem perseguidos pelo macartismo. Publicou 38 livros de ensaios, poesia, romances e memórias.

O mais vendido foi "Para Ler o Pato Donald", escrito com o sociólogo belga Armand Mattelart em 1971. É uma análise perfunctória e hilária dos personagens de Walt Disney – Mickey, Minnie, Patinhas, Pateta e caterva.

Eles são vistos como encarnações ideológicas do puritanismo, da agressividade e do mercantilismo; bichos antropomorfizados que, sem pai nem mãe nem sexo, passam a perna uns nos outros e entesouram. O livro tem lá sua graça. Os Estados Unidos, pátria da livre expressão, o censurou.

O mais prestigiado foi "A Morte e a Donzela", peça cujo tema são as sevícias perpetradas pelos militares latino-americanos e a vingança de uma vítima. Foi encenada com sucesso mundo afora e Polanski fez dela um filme. No Chile, fracassou.

A imagem em preto e branco é uma reprodução de uma foto histórica. Na foto Salvador Allende está no centro acompanhado por outros homens atrás. Nas duas extremidades da imagem dois homens empunham armas.
Ilustração de Bruna Barros - Folhapress

No 11 de setembro passado, cinquentenário da morte de Allende, Dorfman lançou "The Suicide Museum" (sem tradução para o português). Deve ser uma despedida, pois ele tem 81 anos e escreve no epílogo: "Logo estarei morto".

É um romance histórico que embarca no modismo da hora, a autoficção. O narrador se chama Ariel Dorfman, conta trechos da vida do autor, tem a mesma mulher, filhos e amigos – mas é um personagem.

Tudo é absurdo e real quando Pinochet sai do poder à maneira latino-americana, com regalias e adulação civil. O luto e a melancolia predominam.

Seu fulcro é a morte de Allende, saber se ela foi trágica ou épica. Se ele se suicidou quando a milicada invadiu a tiros o Palácio de La Moneda, foi porque teve medo e se acovardou. A gangue de Pinochet alardeou a versão trágica já no 11 de setembro.

A versão épica é corroborada pela sua última foto, de capacete e fuzil na mão, talvez a AR-47 que ganhou para defender a revolução. Sua resistência heroica foi divulgada por Fidel Castro depois de ouvir companheiros e familiares de Allende.

Dorfman trabalhava em La Moneda, mas não foi lá no dia do golpe. Trocara o plantão com um colega, que foi fuzilado no seu lugar. Como conhecia muita gente, sabia que o presidente perguntou a um assessor se estava com medo, e ele respondeu: "Estoy cagado de miedo". Todos riram.

Sabia que o almirante Patricio Carvajal, um dos chefes do putsch, telefonou a Allende e lhe ofereceu um DC-6 para que ele e a família saíssem do Chile. O presidente respondeu: "Usted puede meterte ese avión en el culo". Ao desligar, xingou os traidores de "maricones".

Sabia que Carvajal veio a se suicidar. Sabia que Laura e Beatriz, uma irmã e uma filha de Allende, se mataram no exílio, em Havana. Uma se jogou do 18º andar e a outra se disparou uma Uzi, também presente de Fidel. Mas Dorfman não sabia como o presidente de fato morrera.

No romance, um bilionário do setor de plásticos tem uma iluminação tão súbita quanto óbvia: enriqueceu poluindo o planeta. Para se penitenciar, quer construir um Museu do Suicídio, a fim de convencer os visitantes que a humanidade está se matando.

O fim de Allende terá destaque no tal Museu porque servirá de exemplo, ou contraexemplo, para o suicídio coletivo dos habitantes do Planeta. O bilionário paga toneladas de dólares para Dorfman descobrir a verdade daquela morte.

Poucas vezes se viu um enredo tão inverossímil. Contudo, "The Suicide Museum" toca em algo presente e urgente ao conjugar política e catástrofe ambiental. A generosidade e o radicalismo de Allende têm algo a dizer aos problemas de hoje?

Sitiado em La Moneda, ele fez um último discurso. Disse: "Saibam vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor".

Foi uma linda profecias, mas desde então o homem livre não deu as caras e as avenidas continuam bloqueadas. Se abrirem, será talvez demasiado mais tarde.

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