Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Como Lula pode aprimorar o Minha Casa Minha Vida

A retomada de um programa habitacional voltado à população de baixíssima renda é uma agenda indispensável para o Brasil do século 21

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Planos habitacionais de grande dimensão cumpriram, ao longo da história, em diferentes países, um amplo leque de objetivos estratégicos. Além de atender famílias sem teto e garantir um direito que é a porta de entrada para outros direitos, eles sempre tiveram um papel relevante na reativação da economia e criação de empregos, como ocorreu no New Deal, nos EUA dos anos 1930, na reconstrução da Europa no pós-guerra e na crise de 2008-9 no Brasil.

Outra vertente relevante é o enfrentamento das crises sanitárias. A melhoria das condições sanitárias nas cidades industriais europeias entre a segunda metade do século 19 e início do 20, que levou ao arrefecimento das epidemias, esteve diretamente vinculada ao atendimento das necessidades de habitação e saneamento. As principais recomendações na prevenção da Covid-19 eram "fique em casa" e "lava as mãos".

No século 21, o enfrentamento da emergência climática e dos eventos extremos requer a adaptação e resiliência das cidades, que têm no processo de ocupação urbana vinculado à questão da moradia um eixo fundamental. Não reduziremos as ocupações das áreas de mananciais, das APPs (beiras de córregos e áreas íngremes) e das áreas protegidas sem promover o atendimento habitacional para as famílias de baixa renda.

O ex-presidente e atual candidato Lula fala gesticulando com as duas mãos
O ex-presidente e atual candidato Lula já deu declarações de que retomará o plano Minha Casa Minha Vida - Miguel Schincariol/AFP

Dando conta dessas quatro dimensões —social, econômica, sanitária e ambiental— um grande plano habitacional poderá ter um papel estratégico no próximo governo.

Lula, em diferentes oportunidades, como fez nessa semana em reunião com empresários do setor da construção civil, tem se comprometido com a retomada do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV).

Os méritos desse programa são indiscutíveis, sobretudo por ter sido o único, em grande escala e a nível nacional, que atendeu a população de baixíssima renda, como constatei em meu livro "Pioneiros da Habitação Social" (Prêmio Jabuti, 2015), que analisou todos os programas habitacionais a nível federal implementados no Brasil desde o início da República.

Ademais, em pouco tempo ele gerou uma produção de grande escala em todo o território nacional, compatível com as necessidades do Brasil, embora de qualidade discutível e com alto dispêndio de recursos do Tesouro (cerca de R$ 160 bilhões em valores atualizados).

No MCMV 1 e 2 (2009-2014), 1,7 milhão das 3,75 milhões de unidades contratadas pelo MCMV (45%) foram destinadas à Faixa 1, ou seja, para famílias com renda de até R$ 1.600. Essa virtude foi se perdendo a partir de 2015. Na 3ª etapa (2015-8), das 1,75 milhão de unidades contratadas, apenas 9% foram para a baixa renda.

E, no atual governo, as contratações da faixa 1 do Programa Casa Verde Amarela foram praticamente paralisadas, sendo mantidos apenas os financiamentos com o FGTS, destinadas a famílias com mais três salários mínimos.

A retomada de um programa com esse perfil social do MCMV será uma excelente notícia, mas ele não pode ser uma mera repetição da experiência anterior. Ele deve incluir aperfeiçoamentos e atualizações, como foi proposto no texto "Reconstrução e Transformação das Cidades Brasileiras", uma contribuição do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Cidades (Napp-Cidades), da Fundação Perseu Abramo, para o programa de governo de Lula.

Um novo plano habitacional deve garantir, além do subsídio à baixa renda, seis relevantes inovações em relação ao antigo MCMV:

a) Adotar um leque mais variado de programas, modalidades e projetos habitacionais, que leve em conta a diversidade de rede urbana brasileira, o tamanho dos municípios e sua disponibilidade de terra, as especificidades de cada região e biomas e uma variedade de soluções arquitetônicas e urbanísticas. Não é aceitável que o mesmo projeto arquitetônico seja construído na Amazônia, no Nordeste e no sul do país.

b) Estar mais bem articulado com as políticas habitacionais dos estados e, sobretudo, com as políticas urbana e fundiária dos municípios, que devem ser induzidos a adotar os instrumentos de Reforma Urbana previstos no Estatuto da Cidade para evitar a especulação e valorização da terra.

Para os projetos, é necessário que as prefeituras disponibilizem terrenos bem localizados e urbanizados. Não se deve aceitar, como ocorreu no MCMV, empreendimentos distantes das cidades, que geraram custos indiretos para sua implantação, com a extensão da infraestrutura e da mobilidade.

c) Adotar critérios que contribuíam com o enfrentamento da emergência climática, como inserir os empreendimentos na malha urbana, para evitar a dispersão que amplia a necessidade de deslocamentos motorizados e a emissão de CO2, promover inovações construtivas para descarbonizar a construção civil, reutilizar as águas pluviais e implementar a transição energética nas moradias.

Com a instalação de painéis fotovoltaicos para captar energia solar nas construções, os projetos habitacionais podem se tornar verdadeiras usinas de geração de energia limpa. Um plano habitacional de grande dimensão é uma excelente oportunidade para se implementar o chamado Green New Deal.

d) Estimular outras formas de gestão dos empreendimentos, como a autogestão e o estímulo às cooperativas, como foi feito, mas em escala ainda reduzida, no MCMV Entidades. A participação dos futuros moradores no processo de construção das moradias e na gestão do condomínio podem gerar soluções de melhor qualidade e menor custo.

e) Buscar alternativas capazes de reduzir o valor médio das soluções habitacionais e, portanto, do subsídio por família atendida, para ampliar o atendimento e garantir sustentabilidade econômica. A avaliação custo benefício é fundamental.

Em municípios médios e pequenos, onde há maior disponibilidade de terrenos, as famílias podem receber o subsídio em lotes urbanizados, com infraestrutura e equipamentos sociais (base urbana), material de construção e assessoria técnica. Essa solução garante a custos e subsídios bastante inferiores ao despendidos na construção de uma moradia pronta, que foi a base do MCMV.

f) Priorizar o trabalho social e a organização comunitária para fortalecer a coesão entre os moradores e evitar que os empreendimentos passem a ser controlados por milícias e outras formas do crime organizado, como ocorreu em vários conjuntos do MCMV.

Ao se construir habitação está se criando cidades e novos ambientes urbanos, que poderão gerar impactos relevantes nas várias dimensões relacionadas com o tema. A inovação e a criatividade, com uma avaliação da experiência passada, podem gerar aperfeiçoamentos relevantes.

Isso requer uma articulação federativa entre União, estados e municípios, a participação do setor empresarial, de cooperativas, das associações comunitárias e dos movimentos de moradia, a mobilização dos setores técnicos e de universidades, e vontade política para equacionar um dos maiores problemas do país.

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