Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta
Descrição de chapéu

É impossível traduzir receitas que funcionem como pede o autor

As receitas estão como gaivotas pela internet, tantas que se enrolam nos fios, nos confundem

Traduzir livros é como parto, entre um e outro esquecemos as dores. Há muito tempo não pegava livros com receitas para traduzir. As receitas estão como gaivotas pela internet, tantas que se enrolam nos fios, nos confundem. É desde a cozinheira simples no seu fogão pequeno até a Rita Lobo, imaculada, perfeita. 

A que acudir quando queremos uma geleia de jabuticaba? Mas traduzir é preciso, bradam todos os traduttori traditori. Fazer o quê? Como desvendar outra língua, outra cultura, sem viajar, sem beijar o chão, sem comer da comida? São valas profundas de separação, há que aproximá-las. 

Nos currículos, todo inglês é fluente. Pedimos um cardápio para a cozinheira e que diabo disso era aquilo, nos apareceu com uma salada de “sleeves”. 

Como todo foodie, começamos a babar de curiosidade, seria com certeza um vegetal da Islândia gelada. Esqueçam. Era uma salada de mangas.

Traduzir receitas que funcionem como pede o autor é impossível. Tenho uns livros ajudantes, são os “Ingredients” publicados em várias línguas e com ilustrações perfeitas. 

Podemos comparar o inglês com o espanhol, com o italiano, você é capaz de chegar a uma conclusão do que é aquela alface roxa com bulbo. E frisada.  

Quando apareceu o “Ingredientes” em português de Portugal, me senti feliz, salva. Uma decepção me esperava, logo ali na esquina. Vejam só as artimanhas portuguesas. 

Seção de queijos: Red Leicester, King Island Black Wax Matured, Emmental, Stilton. Seção de legumes: Rosette Bok Choy, Radicchio. E as batatas? Russet Burbank, Pink Eye. Macarrões: alla chitarra, tagliolini, orecchiette...

É possível uma tradução dessas? Tão fiel que é igual?  Que caras de pau. Mas, na verdade, razão têm eles. Traduzidos, esses nomes ficariam mais difíceis ainda de serem entendidos. Enxergar o produto faz a diferença. Uma formiga do Alex Atala é um ponto preto no arroz doce, não um bicho com pernas e olhos esbugalhados, fruto de nossa imaginação perversa. 

E continuamos na labuta, cachaça é rum, acarajé é falafel, pequi é um tosco açafrão?
 

Richard Sennett, no seu livro “O Artífice” reproduziu uma receita de galinha que uma senhora iraniana passou para ele. São muitas páginas, vou dar só a ideia, estou sem o livro.  

“Seu filho morto, prepare-o para uma nova vida. Dê-lhe um banho. Encha-o, sem deixar que ele coma demais. Faça com que use seu casaco dourado. Aqueça-o com cuidado, pode morrer com excesso de calor. Enfeite-o com suas mais belas joias. É a minha receita de frango assado.”

Interpretemos, vamos traduzir. “Seu filho, o frango, precisa ser lavado e recheado para passar de cru a assado. Asse até dourar, cuidado com a temperatura, cubra-o com o melhor molho que conheça.”
São assim, muitas receitas persas. Acho que fazem sentido, com um pouco de esforço. E há sempre um filminho no YouTube para nos ajudar.

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