Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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A trilha

Ele a olha debaixo d'água. Uma imagem que não vai poder esquecer jamais

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Pedro Mairal

Escritor argentino, é autor de "A Uruguaia", pelo qual recebeu o prêmio Tigre Juan de melhor romance em 2017, e de "Uma Noite com Sabrina Love" (2000), entre outros. Ambos foram lançados no Brasil pela Todavia.

Tinham se visto em algumas reuniões familiares e se cumprimentavam com simpatia e se olhavam de soslaio entre os copos e as piadas de algum churrasco muvucado. Ela pensava: ele é o primo do meu cunhado. Ele pensava: ela é a irmã da esposa do meu primo. Uma trama de laços domésticos. E agora é verão e coincidiram os dois convidados durante uma semana na casa que aluga o primo, em Santa Catarina.

Cada um vê o outro passar em câmera lenta, mas com zoom e close, atravessando a multidão desfocada do enxame de filhas, filhos, namorados, tios, algum amigo, seres de genes similares que fazem turno pela casa. Chegam uns, saem outros, a gente acrescenta um colchão no piso de um quarto, alguém dorme no sofá...

Ele toma uma ducha de água gelada no jardim para tirar a areia e ela, só de butuca. O corpo malhado, bronzeado, que se nota quando o short abaixa um pouco e se vê uma faixa de pele mais branca. Ela repara na forma como a água cai por seu pescoço. Um homem lindo e proibido. Porque, mesmo que não tenha vindo acompanhado, sabe que está casado e tem uma filha por aí.

Ela brinca por um tempo só de biquíni com alguém, jogando vôlei, e ele, só de rabo de olho. Sua energia, sua risada ao sol, a confiança de seus 30 anos, seu corpo atlético, a forma em que acomoda apenas o top do biquíni antes de soltar cada saque. Uma mulher linda e proibida. Porque, mesmo que esteja só, ele sabe que ela tem um namorado na ponte aérea com Brasília.

Mas se comem terrivelmente com os olhos. Os dois estão começando a sentir o mal-estar de não poderem se atracar, de se pegarem de jeito e deixar que se choquem como duas estrelas que vêm se aproximando uma da outra há milhões e milhões de anos, que exploda tudo, sem provocar um escândalo na família, um estalido bombástico nuclear no equilíbrio dos vínculos afetivos. Não conseguem parar de se examinar, se medir, se estudar em silêncio. Até que um dia alguém organiza um passeio em grupo por uma trilha pelo lado norte, onde há uns piscinões de água do mar entre as pedras, e uns começam a dizer que iam cancelar e outros que nunca apareceram e, no final, sobraram só os dois, que decidiram fazer o programa de qualquer forma.

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Cachoeira em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

Nesse dia estão postas as bandeiras de perigo. Bandeiras vermelhas em riste porque o mar puxa para dentro e engole todo mundo e só devolve afogado, sem alma. Enquanto caminham pela areia, falam de coisas superentendiantes, de seus respectivos trabalhos. O diálogo é uma obrigação para tapar o estrondo ultrassônico do desejo. Falam em piloto automático até chegarem às pedras e ao treparem cada pedra grande, é hora de seus corpos assumirem o controle e fazerem calar seus cérebros laborais.

Em cada pedra grande, ele sobe primeiro e lhe dá a mão e ela sobe atrás. A força dele. A força dela. As mãos se agarram com firmeza a princípio, depois passam a dar-se o antebraço. Ela, trepando com um sorriso de felicidade pela paisagem deslumbrante e pelo gozo físico de interagir com o corpo dele, mesmo que seja assim, de modo inocente. Exceto por uma simulação de escorregada numa pedra molhada que ela evita agarrando-se no ombro dele.

Fazem uma pausa. Tomam da mesma garrafa de água que ela trouxe. Primeiro ela, depois ele. Seguem, já ofegando pelo esforço físico e pelo calor. Desviam-se do caminho demarcado. Chegam a uma piscina de água transparente, oculta entre as rochas. Tiram suas camisetas e os calçados e se metem.

Ele a olha debaixo d’água. Uma imagem que não vai poder esquecer jamais. Saem à superfície. Não dizem nada. Ela volta a mergulhar e brinca de lhe apertar o tornozelo por um instante e nada até a outra ponta. Cada um se localiza em um dos extremos do pequeno espelho d’água. Olham um para o outro como dois lutadores esperando o sinal. Ninguém os vê.

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