Oscar Vilhena Vieira

Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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Oscar Vilhena Vieira
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Lealdade constitucional

Atores políticos se tornam cada vez menos compromissados com as regras do jogo constitucional

Constituição Federal de 1988
Constituição Federal de 1988 - Sergio Lima - 03.out.2013/Folhapress

A Constituição está em crise? Como professor de direito constitucional, essa é a pergunta que mais tenho ouvido nos últimos tempos. 

A Constituição é uma norma que aspira habilitar a competição política, regular o exercício do poder, assegurar o Estado de Direito e as regras básicas de justiça que devem pautar a relação entre as pessoas e entre essas e o Estado. A função fundamental da Constituição é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar democraticamente seus conflitos e divergências, tendo como limite substantivo as regras de justiça por ela asseguradas. Sua efetividade depende, sobretudo, do autocomprometimento de todos atores com as regras estabelecidas pela Constituição. Quando isso não acontece, a Constituição entra em crise.

Não há como contestar que o Brasil imergiu numa profunda crise política nos últimos anos. Essa crise é uma consequência da multiplicação irracional e perda da representatividade dos partidos políticos, da erosão da integridade do processo eleitoral, maculado por um amplo e difuso esquema de corrupção, e da ação cada vez mais oportunista de diversos atores políticos e institucionais. 

O presidencialismo de coalizão, que por mais de duas décadas foi capaz de coordenar a política brasileira, transformou-se num presidencialismo de cooptação. O Supremo, que vinha exercendo uma função moderadora, passou a se comportar de forma cada vez mais errática, contribuindo para aumentar a insegurança e a instabilidade política.

A grave recessão econômica e a consequente crise fiscal agravaram, por sua vez, o conflito distributivo. Hoje não há como negar que o sistema de privilégios corporativos, associado aos esquemas de incentivos, isenções fiscais, desonerações e juros subsidiados para setores empresariais reduziram enormemente a capacidade do Estado de cumprir suas obrigações essenciais. As crises dos sistemas de saúde, educação e segurança pública são expressão desse conflito. A manutenção do Estado social desenhado em 1988 depende da desconstrução do corporativismo patrimonialista há muito entrincheirado no Estado brasileiro.

Nesse contexto, os atores políticos e institucionais têm se tornado cada vez menos compromissados com as regras do jogo constitucional, buscando preservar seus interesses imediatos a qualquer custo. A decretação da intervenção federal no Rio é apenas o último exemplo de uma conduta temerária, que terá como única consequência trazer os militares de volta para o centro da política brasileira. Se a convocação dos militares se justifica para combater o crime organizado na Baixada Fluminense, por que não em outras paragens?

A guerra de narrativas, a polarização política, e mesmo a multiplicação de atos inconstitucionais e conflitos entre os poderes não significam necessariamente que estejamos vivendo uma crise de natureza constitucional. Afinal, as constituições são instrumentos voltados a institucionalizar o conflito, a coordenar disputas, a enfrentar crises e a corrigir desmandos. Não há como negar, no entanto, uma forte degradação do ambiente constitucional. 

A retomada da normalidade depende, neste momento, de três fatores fundamentais: a lealdade das lideranças e dos partidos ao calendário e aos resultados das próximas eleições; a recomposição da autoridade do Supremo e a autocontenção dos militares. À sociedade cabe cobrar essa lealdade.

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