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PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias. Feita por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

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Baixada Fluminense também é solidariedade, amor e sociabilidade

Local tem papel crucial na construção da região metropolitana do Rio de Janeiro

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Osmar Paulino

Diretor criativo e curador do FAIM Festival, coordenador na Uniperiferias e colaborador do PerifaConnection

É uma manhã de verão de 1995. Em meio às brincadeiras de três irmãos, todos negros, em um amplo quintal de terra batida, no bairro de Imbariê, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o pai das crianças surge com uma câmera fotográfica semiprofissional em mãos a fim de fotografá-los.

A menina segura a cabeça do irmão mais velho e beija-o no rosto. O irmão mais velho abraça a irmã e, um pouco atrás, o irmão mais novo tem um sorriso no rosto e um olhar compenetrado na cena dos dois a sua frente.

Em 1995, Osmar Paulino (dir.) com os irmãos no bairro de Imbariê, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense - Elias Jamaica/ Arquivo pessoal

Na imagem descrita, eu sou o irmão mais novo. Imagens como essa compõem o vasto arquivo visual que a condição de ser uma cria da BXD (Baixada Fluminense) me proporcionou. Apesar das imagens públicas estereotipadas que sempre circularam nos veículos de comunicação, o cotidiano em Imbariê me apresentava imagens disruptivas, que quebravam a linha existencial acerca de mim e das pessoas que compunham a comunidade em que eu estava inserido.

Imagens de refinadas organizações sociais, que invariavelmente meu pai liderava, e que lutavam por direitos fundamentais. Imagens de extrema solidariedade entre famílias que se revezavam no cuidado das crianças para irem trabalhar. Imagens das idas às cachoeiras e a praia de Mauá. Imagens dos passeios ciclísticos que movimentavam o bairro todo. Imagens dos encontros na biblioteca, sempre muito cheia e disputada, para fazer os trabalhos da escola.

Imagens de quando a criançada pegava alguns dos cavalos de um senhor do qual não me lembro o nome agora e os deixavam nos campos de futebol pastando e andávamos a tarde inteira sem cela, mesmo com a certeza da repreensão que iríamos receber dos nossos responsáveis.

Imagem das idas à barraca do senhor Osmar, meu xará, para comprar sacolé. Imagens dos mutirões para bater alguma laje vizinha ou para ajudar a carregar qualquer tipo de material de construção para dentro dos quintais.

Imagens de pessoas nas ruas ajudando seus vizinhos quando a chuva causava enchentes. Imagens das festas em família, nas quais o portão ficava aberto e todo mundo podia entrar, e mesmo se não tivesse vínculo sanguíneo, era chamado de tio, tia, irmão, primo e prima. Enfim, são muitas destas imagens que permeiam o meu imaginário da BXD.

Homem conserta bicicleta para menina em Imbariê, Duque de Caxias, no Rio
Homem conserta bicicleta para menina em Imbariê, Duque de Caxias, no Rio - Osmar Paulino/Arquivo pessoal

Repare que todas as imagens de minha memória citadas acima têm como componente comum as pessoas e sua incrível capacidade de sociabilidade, inventividade e solidariedade. Isto me faz lembrar de um questionamento que o professor Jailson de Souza e Silva levantou há alguns anos. Na ocasião ele questionou se haveria mais cidade no bairro da Barra da Tijuca ou no complexo de favelas da Maré.

E ele mesmo respondeu que havia mais cidade na Maré. Pois o que ele apresentou como ponto de análise foi a capacidade de criação de rede de sociabilidade que a Maré estabelecia, dialogando diretamente com o termo grego "polis", que significa cidade, e não com "urbe", termo latino que se refere aos equipamentos urbanos de um espaço, como prédios, ruas asfaltadas, sinalização de trânsito etc.

Se trouxermos essa mesma lógica para a Baixada Fluminense, teremos de admitir o importante papel que a BXD exerce para a construção da região metropolitana do Rio de Janeiro, sobretudo na dimensão mais orgânica das relações sociais. Isto se dá pois o melhor da BXD são as pessoas que lá moram. São elas que constroem toda a cultura que possibilita a existência na região. Dos caboclos aos quilombos. Das estradas de ferro ao Porto Estrela. Do caminho do café aos laranjais. De Joãozinho da Goméia a Solano Trindade. De Messias Neiva a Armanda Álvaro Alberto.

De tantas instituições e pessoas que passaram, pararam ou tiveram seu rebento na minha Baixada Fluminense. Mas por que estas imagens não estereotipadas da Baixada historicamente não são públicas? Talvez se levarmos em consideração que toda imagem carrega com ela um discurso, e que os discursos são ferramentas usadas dentro de redes que são estabelecidas por relações materiais e simbólicas de poder, poderemos ter uma possível resposta para esta pergunta.

Crianças brincam em rua de Imbariê, Duque de Caxias, no Rio
Crianças brincam em rua de Imbariê, Duque de Caxias, no Rio - Osmar Paulino/Arquivo pessoal

O fato de eu estar aqui escrevendo sobre a BXD a partir de um discurso que a enaltece, e com isso provocar no leitor uma maneira diferente de olhar a Baixada Fluminense, só é possível em razão de uma plataforma de comunicação composta por pessoas de periferias e favelas, no caso o PerifaConnection, que se lança na arena de disputa de espaço na mídia impressa e digital.

Portanto, no final o que queremos é ter o poder de te convidar a visualizar a Baixada Fluminense como nós a olhamos: de dentro.

Se você deseja ter outros regimes visuais da BXD, eu te convido a adentrar no cotidiano da região, nas suas entranhas, na Baixada profunda. Só assim verás que, sim, a Baixada é cruel, mas é também feita de muito afeto, resiliência e muito potente.

Dia 30 de abril marca o aniversário desse lugar com importante papel na construção da região metropolitana do Rio de Janeiro. Parabéns Baixada Fluminense!

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