Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Eliane Trindade

Mutirão inédito retifica documentos de 106 crianças e adolescentes trans

Força-tarefa organizada por ONG reúne Vara da Infância, Promotoria e Defensoria do Rio para autorizar mudança de nome e gênero na certidão de menores de 18 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Nesta segunda-feira (19), T. A., 10 anos, recebeu a nova certidão de nascimento na qual constam o gênero masculino e o nome que adotou como menino trans há 3 anos.

"Ele ficou muito emocionado, assim como no dia da audiência em que chorou ao agradeceu ao juiz pela sentença que nos permitiu finalmente mudar seus documentos", relata Camila Andrade, mãe do garoto que começou o processo de transição de gênero em 2021 e desde então precisou mudar pela terceira vez de escola.

A família vive no Recife (PE), mas viajou até o Rio de Janeiro (RJ) para participar do Mutirão do Amor, em 26 de julho, quando 106 crianças e adolescentes trans, com idade entre 6 e 16 anos, conseguiram autorização judicial para retificação de suas certidões de nascimento.

Em 26 de julho, a Vara da Infância do Rio de Janeiro realizou mutirão inédito para retificação de documentos de 106 crianças e adolescentes trans - Divulgação/ONG Minha Criança Trans/Divulgação

"A transfobia aqui no Recife é bronca. Tudo é muito difícil", afirma a cirurgiã dentista, que diz ter passado por muitas situações de constrangimento com o filho que tinha no RG o nome feminino de batismo e o nome social masculino adotado após a transição.

"Não consegui fazer a alteração dos documentos aqui no meu estado, onde o processo só é permitido para pessoas trans maiores de 18 anos", explica a mãe.

O Mutirão do Amor foi resultado de uma força-tarefa organizada pela ONG Minha Criança Trans com a participação da Defensoria Pública, Vara de Infância e da Juventude e Ministério Público do Rio de Janeiro.

As audiências foram conduzidas por duas juízas titulares e um juiz auxiliar durante um dia inteiro no fórum localizado no centro da capital carioca.

"Foi um mutirão inédito e histórico. Não se tem registro no mundo de um outro exclusivo para crianças e adolescentes trans", explica Thamirys Nunes, fundadora da ONG Minha Criança Trans, que levou a ideia à Defensoria e ao MP.

Natural de Recife, T. A., 10 anos, participou de mutirão para retificar documentos de crianças e adolescentes trans no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal/Leitor

Os defensores e promotores de Justiça que participaram das audiências concentradas em um único dia se sensibilizaram diante da dificuldade de dezenas de famílias em alterar a documentação de seus filhos após a transição de gênero.

"O documento civil é o meio a partir do qual comprovamos nossa existência", afirma o defensor público Rodrigo Azambuja, que integrou o mutirão.

"Todas as vezes que essas crianças tinham que se relacionar na escola ou no serviço público passavam pelo constrangimento de serem identificadas a partir de uma forma que não se reconheciam."

Pessoa trans maiores de 18 anos podem alterar a certidão de nascimento diretamente no cartório. Já as menores de idade precisam fazer via judicial, em uma seara que gera debates e questionamentos.

A também defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Mirela Assad, constata a sexualização da pauta de requalificação de gênero de crianças e adolescentes no país.

"Acham erroneamente que se trata de fazer intervenção nos corpos, o que é absolutamente proibido. Não se autoriza hormônio para crianças e adolescentes. Só queremos dar dignidade para esses meninos e meninas trans", diz a defensora pública.

No caso do mutirão, o processo de requalificação foi feito à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, tramitando em uma Vara da Infância. "Estamos falando de crianças em sofrimento, que passaram por evasão escolar e violências", explica Mirela.

Para respaldar as ações judiciais, foram anexados relatórios de psicólogos e psiquiatras para subsidiar a requalificação de gênero.

"Não se trata de laudo médico, mas de um relatório de acompanhamento para deixar todo o processo instruído juridicamente, com seriedade e respaldo legal", completa a defensora pública.

Segundo a fundadora da ONG Minha Criança Trans, como o Conselho Nacional de Justiça ainda não regulamentou a questão o acesso ao direito é dificultado.

"Diante da falta de preparo e preconceitos, muitas famílias não se sentem confiantes para entrar na Justiça, onde juízes demoram para dar a sentença ou negam o pedido", constata Thamyres, que conseguiu judicialmente também no Rio a retificação da certidão da filha trans de 6 anos, em agosto de 2021.

"A pessoa trans não nasce com 18 anos. Ter um nome é o nosso primeiro direito social", defende ela, ao apoiar outras famílias que buscam a retificação garantida por lei.

O mutirão inicialmente previsto para 20 casos ultrapassou uma centena, com pedidos vindos de todo o Brasil e até do exterior. Três deles eram de crianças e adolescentes de famílias brasileiras radicadas em Portugal, Inglaterra e Estados Unidos.

Decorridos 15 dias para recursos e contestações, todas as sentenças já transitaram em julgado. "São inquestionáveis", celebra Thamyres, em uma nova batalha a partir de agora para que os cartórios cumpram a decisão judicial.

A pessoa trans não nasce com 18 anos. Ter um nome é o nosso primeiro direito social

Thamirys Nunes

fundadora da ONG Minha Criança Trans e idealizadora do Mutirão do Amor

A ONG Minha Criança Trans procurou a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) para comunicar oficialmente sobre o mutirão. "Esclarecemos que as sentenças são definitivas e que não cabe aos cartórios julgar a competência ou o processo", relata Thamirys.

"Retificar o nome e o gênero de uma criança trans é protegê-la contra o preconceito e a desinformação em uma sociedade muito transfóbica."

A dentista pernambucana precisou contar essas barreiras ao retornar para casa com a sentença debaixo do braço. "No cartório, chegaram a me pedir certidões negativas criminais de uma criança de 10 anos", conta Camila.

A mãe Indignada escreveu ao juiz expondo os empecilhos para retificar os documentos do filho trans. Só após um email do magistrado ordenando que se cumprisse o mandado judicial, a nova certidão foi enfim lavrada.

Com os documentos retificados, a criança ou adolescentes pode escolher se e em qual ambiente ou quando revelar a sua identidade de gênero.

Quando era do Núcleo da Diversidade da Defensoria Pública do Rio, Mirela vivenciou um caso trágico de uma garota trans que aguardou ansiosamente os 18 anos para fazer a requalificação de gênero.

"Era o apagamento de uma existência", relata a defensora pública, que incluiu o caso da jovem do interior do estado, negra e de família pobre, em um mutirão voltado para adultos trans, realizado em 2022.

No dia marcado, ela não apareceu. "Recebemos a notícia de que havia se matado sem ter conseguido esse direito", emociona-se Mirela.

No mutirão recente, ela voltou a se emocionar quando viu uma garotinha trans de 6 anos, a mais nova do grupo, assinar a sentença de requalificação de gênero. "Ela fez uma assinatura com aquela letrinha de quem ainda estava sendo alfabetizada."

A defensora pública ressalta a importância de um processo judicial célere de requalificação para evitar traumas, lembrando que não se trata de um ato irreversível. Caso a criança ou adolescente volte no futuro a se identificar com o gênero original, a documentação pode ser alterada novamente.

"Esta é uma pauta que precisa de atenção do poder público. Nenhuma instituição jurídica, nem a Defensoria nem o Ministério Público nem o Poder Judiciário, tomou a frente para falar abertamente sobre requalificação de crianças trans", constata.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.